Capítulo 50

18 De Março 1990



- Ai… Eu acerto sempre. Há 10 anos, quando soube que vocês iam sair naquela noite para jantar, notei logo que se ia estabelecer uma relação amorosa. Tinha quase a certeza! E agora… estás prestes a casar com ele, Melody!
Emily olhava incansavelmente para o vestido de noiva branquíssimo que envolvia o elegante corpo da mãe, que se encontrava em frente ao espelho, com uma cara nervosa.
- Como é que estou? Exagerei na pintura? E no cabelo? E a grinalda? Fica-me bem? Eu sabia que não a devia ter comprado, apenas serve para arrepelar o cabelo.



- Melody… - Interrompeu Emily com uma ligeira gargalhada, levantando-se da poltrona que se encontrava no quarto da mãe. – Tu estás linda! Pareces uma princesa!
- Achas?
- Tenho a certeza! O George vai ficar de boca aberta quando vir a sua futura esposa a desfilar pelo altar.



Quando finalmente se descolou do espelho, a mãe começou a calcorrear o quarto para trás e para diante, parecendo que as solas dos seus sapatos de salto alto se gastavam consoante os passos. Emily seguia-a com o olhar, sentando-se novamente na poltrona com o olhar semicerrado de impaciência.



- Melody… - Chamou Emily, mas a mãe parecia nem a ouvir… - Melody… Melody! MELODY!
Ao último chamamento, a mãe parou num sobressalto, olhando com os olhos arregalados para Emily, que começava a ficar enervada com tanta ansiedade por parte da mãe.
- Descontrai! Lembra-te dos exercícios anti-ansiedade que te ensinei… Inspirar… - Emily inspirou profundamente, o peito a inchar progressivamente. – Expirar… - Expirou descontraidamente.



- Emily, isso não resulta! Já é a enésima vez que tento fazer esse teu exercício e ainda faz com que eu fique ainda mais ansiosa!



Nesse instante, o indiscreto som da buzina de um carro entrou pela janela, fazendo a mãe pular de susto e medo.
- Ai… o carro chegou! Ai meu Deus… Emily!
- Descontrai, rapariga! Vá, eu levanto-te o vestido por trás para não arrastar…
E com isto, Emily pôs-se atrás da mãe, segurando o traseiro do vestido.
Trespassei a parede do segundo andar, flutuando até junto do carro que dentro do qual se encontrava um elegante motorista que buzinava com uma cara cansada.
A mãe e a Emily saíram de casa e detiveram-se sobre os acolchoados bancos do carro envoltos de cabedal macio e espesso.
Embora eu não passasse de um fantasma, conseguia sentir tudo o que estava à minha volta, cheirar os agradáveis odores da natureza… tudo. Apenas não conseguia agarrar e abraçar a minha mãe, envolta daquele lindíssimo vestido. As saudades que eu sentia dela eram distintamente profundas naquele momento. Sentia uma enorme vontade de a abraçar, de a acariciar. Saudade que eu nunca pensava sentir de uma pessoa que nunca tinha conhecido.
Mal a mãe entrou no luxuoso carro, o motorista deu-lhe as perfunctórias congratulações pelo noivado. Por sua vez, a mãe acenou com a cabeça, desenhando um recto e forçado sorriso.
Entrei de rompante no carro, no intuito de ouvir a conversa entre a mãe e a Emily, contudo, o silêncio pareceu derrotar o meu desejo, pelas poucas ou mesmo nulas palavras que diziam uma à outra.
A viagem foi um pouco longa, embora confortável pela sumptuosidade que aquele carro dispunha aos seus passageiros. Quando avistei a Igreja dos Três Bispos, apercebi-me logo que tinha chegado, pois sabia que os meus pais se iam casar naquele lugar.
A Igreja fez-me pensar no meu pai, que, naquele momento, no presente, devia estar com o coração nas mãos por eu ainda não ter chegado a casa, pelo que fez com que o desespero, outrora adormecido, começasse a apertar-me o coração, pela incógnita saída daquela dimensão, mas rapidamente esqueci aquele assunto, seguindo a mãe e a Emily para a entrada da Igreja, onde um homem com uma cara estranhamente familiar aguardava a noiva.
- Bem… aqui está o padrinho de casamento. Bom dia, Arthur! – Exclamou Emily com a cara avermelhada de vergonha, entrando rapidamente na Igreja, as conversas alheias dos convidados a libertarem-se com a abertura da porta.



O homem, a quem chamavam Arthur, olhou para a mãe de alto a baixo, com os seus olhos verdes-água a reluzirem à suave luz matinal do sol.



- Estás linda, mana.
Linda!
- Obrigada…



Por breves instantes, mantive-me imóvel a observar a familiar cara daquele homem, que, pelos vistos, era irmão da minha mãe, meu tio. Mas deixei-me logo de especulações e entrei na Igreja, notando nas radicais diferenças.
Nada de pó, nada de estátuas a ladear o altar, nada de bancos degradados… Invés disso, um mármore branco e fumado constituía as paredes do altar. O tapete mais vermelho do que nunca, com arranjos de flores à entrada. No tecto, encontravam-se suaves e flexíveis lençóis brancos como a neve, que tremeluziam com o vento que entrava pelas janelas superiores.



O pai aguardava ansiosamente e mãe, junto do padre, com os seus olhos arregaladíssimos e o seu corpo estacado. O cabelo perfeitamente moldado para trás, o seu fato preto e branco, brilhando o branco à luz reflectida pelas janelas.



Todos os convidados se levantaram, com as suas vestes formais, olhando, com o pescoço visivelmente empertigado, com um enorme sorriso para a mãe, que fitava o seu “futuro” esposo. Arthur acompanhava a marcha da noiva, com um sorriso resplandecente desenhado na cara e com o seu cabelo negro e ondulado. Eu continuava a fixa-lo tentando-me recordar quem era, mas os pensamentos eram ténues, ao lado da ansiedade e do entusiasmo que tomavam conta de mim, ao ver o casamento dos meus próprios pais.



Capítulo 49

Olhei em redor, observando a minha escola completamente mudada, até o comportamento dos alunos era diferente, pois, diferenciava-se do comportamento dos meus colegas pela serenidade, tolerância e educação. Bem dizia o meu pai: «Esta juventude já não é o que era». Confesso que por vezes me ria com aquela expressão do meu pai, e de todos os homens da sua idade, pelo simples facto de a achar antiquada e ultrapassada, mas, dadas as circunstâncias, vou ter de lhe dar uma certa razão.
Mas mal tive tempo de observar todos os pormenores diferentes que se erguiam aqui e ali, pois o tempo avançou incrivelmente depressa, levando consigo todos os alunos, objectos e cores que se achavam na escola, fazendo alguns desaparecer pela escuridão, e outros simplesmente desfazerem-se em fiapos continuando a flutuar naquela imensidão.
Fui parar a um parque, onde à sua frente se começava a erguer através de farrapos de sombras, um belíssimo Restaurante.



Era noite, o que mostrava que o tempo tinha avançado radicalmente depressa. Olhei para o céu nublado, fiapos cinzento-fumo e prateado a deslizar pela superfície da lua cheia perfeitamente branca e florescente.
Avancei, num passo deslizante até à esplanada daquele luminoso restaurante, sentindo a gravilha do carreiro da saída do parque a estalejar por baixo dos meus pés. O restaurante destacava-se pelas suas luzes florescentes e brilhantes, no meio daquela assombrada e pouco movimentada rua. Tinha um aspecto subtil e clássico. Não era muito extravagante em termos de decoração, mas era agradavelmente acolhedor.
Segui naquele estranho carreiro que ia desembocar à entrada da esplanada, onde se erguia um portão de ferro forjado. Nem me dei ao trabalho de o abrir, apenas o interceptei, como se fosse puro e ligeiro fumo. No meio das dezenas de mesas, a do extremo da vedação metálica que circundava aquela esplanada foi a que se destacou mais na minha visão, pois era onde o meu pai e a minha mãe se encontravam sentados.
Aproximei-me com um enorme sorriso na cara e com o coração aos pulos. Pelo que parecia, o jantar estava a correr muitíssimo bem, pelos sorrisos e risinhos provenientes da boca um do outro. A mãe comia envergonhadamente, com receio de se sujar ou de não ter maneiras.



O pai, com a sua façanha sedutora que eu nunca soube, levava uma garfada de arroz de marisco à boca e ficava especado a olhar para bonita face da mãe, deixando esta um pouco incomodada mas ao mesmo tempo eufórica e entusiasmada.
- Bem… - Disse a mãe com uma voz rouca. – Já acabaste o teu trabalho de Biologia? O prazo de entrega é amanhã!



- Sim, já acabei…
- Ah… e… o de História? Sabes que a professora…
O pai interrompeu-a, pegando-lhe suave e amorosamente na mão, com os seus olhos a fitarem os delas e com a voz ligeiramente trémula e num tom reduzido:
- Melody… eu queria falar sobre mais alguma coisa sem ser da Escola… Vamos falar sobre…
nós.



- Nós? – A mãe pigarreou, mas rapidamente se estendeu para um forte e sonoro engasgo.
- Estás bem?
- Sim… - Disse ela tentando recuperar. – O que ias a dizer?
- Bom… huh…
Rapidamente um elegante empregado se dirigiu a eles, com uma travessa na mão, em cima da qual repousava um monte de loiça suja.
- Desejam sobremesa?
- Eu desejo! – Apressou-se a dizer a mãe, visivelmente avermelhada pela sua timidez, coisa que eu nunca esperava.
- Temos as mais variadas sobremesas: Profiteroles, Pudim
Flan, Bolo Angelical, Gelado da casa, Mousse de Chocolate, Mousse de manga…
- Podia vir mais tarde por favor? Ainda estamos a decidir! – Exclamou o pai, começando a ficar nervoso pelas interrupções.
- Com certeza! Então, aqui fica a lista para o caso de terem dúvidas, assim como o nosso panfleto de promoções, vendemos dois vinhos pelo preço de um e… ah, já provou o famoso Bolo de Bolacha?
-
Não! – Vociferou o pai. – Nós… nós vamos decidir, por livre e própria vontade! Obrigado meu senhor!
O empregado recolheu os pratos sujos e correu até ao interior do restaurante. A mãe revirou os olhos do empregado para o pai com uma cara aterrada.
- Bem… ele estava a ser simpático. – Disse a mãe.
- Não creio… - Respondeu o pai com um ar céptico. – Apenas um empregado chato. Mas… não era disso que eu queria falar.



Mais uma vez, a mãe engoliu seco, com os olhos arregalados e olhando em redor tentando descobrir algum motivo para interromper uma vez mais o discurso do pai, porém, nada pareceu estar do seu lado, obrigando-a a ouvir nervosamente o que o pai lhe tinha para dizer.
- Bem… eu tenho estado a pensar muito nisto… muito mesmo… até que cheguei a uma conclusão. Melody… - Pousou as suas mãos por cima das dela. – Eu… eu… eu amo-te!



Nesse momento, a expressão da mãe variou de apática para chocada que por sua vez mudou para uma cara nervosa e histérica. Levantou o braço, pedindo a conta ao empregado. O pai com a sua expressão desapontada e sem esperanças, mas assim que pagaram o jantar a meias a mãe levantou-se, pegou no braço do pai e levou-o para fora da esplanada.
Eu segui-os, num passo acelerado e entusiasmado. Quando chegaram ao parque que se achava diante daquele restaurante, a mãe empoleirou-se nos braços do pai, com um enorme sorriso acompanhado de um histérico e perfeitamente audível guincho.





As suas caras retratavam felicidade, amor e ternura. Os olhos dos dois reluziam à fraca luz do luar, e estavam amorosamente entrelaçados um no outro, envolvendo os braços nos seus pescoços. Aqueles risos e expressões divertidas estacaram por completo quando os lábios um do outro se tocaram ternamente.



Capítulo 48

Antes de poder ver a dolorosa imagem da cara do pequeno Dave marcada, todo aquele hall, toda aquela casa se desfez em sombras, de novo. Permaneci de olhos fechados, como os tinha no momento em que Robert estava prestes a agredir o Dave. As lágrimas caíam-me pela face, o ódio e a raiva que sentia daquele homem trepavam-me pelo coração, a tristeza abateu-me a mente, pensando no pobre Dave.
Senti o meu corpo, novamente, a cair, como se me estivesse a atirar de um precipício de 200 metros, sentindo uma enorme ânsia a percorrer-me as entranhas.



Quando finalmente senti os meus pés assentes no chão, quando abri os olhos, deparei-me com a minha própria escola. Por breves instantes, senti uma pontada de esperança a picar-me o coração, mas rapidamente reparei nas diferenças. Os cacifos eram completamente diferentes, feitos de uma espessa e aclarada madeira, o chão mais escuro, e o tecto onde se notava nitidamente a ausência daquela odiável humidade. Estava como nova. Estava diante do corredor principal onde se concentravam a maior parte dos alunos, embora, naquele “mundo” fossem muito menos.



Calcorreei o corredor, olhando em redor observando o comportamento dos alunos e dos professores que lá passavam.
Encaminhei-me até junto das casas de banho onde se concentrava uma grande quantidade de cacifos. De súbito, uma voz feminina guinchou:
- Melody!
Olhei para trás, e uma rapariga, jovem, com cabelo curto e com uma camisola completamente espalhafatosa, a sua saia de folhos amarela e preta parecendo uma abelha. Num passo acelerado, interceptou o meu corpo e dirigiu-se para junto de uma rapariga de cabelo preto como o breu perfeitamente penteado e entrançado, juntamente com uma fita cor-de-rosa a envolver-lhe a cabeça. Essa rapariga olhou para trás, e os seus olhos verdes e florescentes reluziram com a forte luz dos candeeiros do corredor.



- Olá, Emily. O que se passa? – Perguntou com uma voz doce.
- O… o… - Gaguegou ofegantemente a amiga. – O George! Ele não pára de olhar para ti, amiga! Isso só pode significar uma coisa!



- Que eu tenho um letreiro na testa?
- Não… que disparate, Melody. Ele gosta de ti, com toda a certeza!
- Ah, sim claro. E eu chamo-me Carmen Miranda e tenho o mundo todo a meus pés. Emily… ele jamais irá gostar de mim. Ao pé dele pareço uma tola!



Fitei os seus olhos verdes-água, as suas feições incrivelmente parecidas com as minhas, e já para não falar da atitude. Os meus olhos brilharam. Pela primeira vez senti-me bem e satisfeita naquela reviravolta no tempo. Estava diante da minha própria mãe!
- Pronto, se não acreditas em mim, devias olhar para trás de ti. – E dito aquilo, Emily desatou a correr pelo corredor fora.
A minha mãe olhou repentinamente para trás, e deparou-se com um rapaz muito bem aparentado, com uma roupa, embora antiquada que naquela altura era moda, apresentável e o seu cabelo despenteado e grande. O seu rosto magro e longo, os seus olhos castanhos… George, era o seu nome. George… o meu pai.



A minha mãe deixou cair os livros ao dar um abrupto encontrão com o meu pai.



- D-Desculpa. E-Eu apanho isto. – Gaguejou o pai, agachando-se. Por sua vez, a mãe também se agachou, acontecendo o
cliché que todos conhecem. As mãos um do outro entrelaçaram-se fazendo-os fixarem-se mutuamente.
- Huh… acho que tocou para a aula… não ouviste? – Inquiriu a mãe, olhando em redor com o sangue a subir-lhe à cabeça pela vergonha.



- Eu estava a pensar. – Disseram em uníssono.
- Diz… - Disse a mãe com uma voz rouca.
- Bem, huh… estava a pensar… estava a pensar se tu… - Pigarreou – Eu estava a pensar se tu quererias sair comigo… conheço ali um bar e…
- Às 15:00 H… a seguir às aulas… - Disse a mãe com uma voz suave e quase histérica.
- C-Certo… às 15:00 H.
A mãe não parava de fixar o pai. Aquilo começou a assustar-me, o pai nunca me tinha dito que tinha conhecido a mãe no corredor da
minha escola.
Foi então, que o pai pegou na mão da mãe, suavemente, e balançou um pouco com ela, com os seus olhos fixos na sua esbelta face.



Aquela imagem do casal de mãos dadas era-me muito familiar… muito mesmo. Foi então que, ao observa-los, me apercebi de uma coisa. Estava diante da primeira visão que tive, quando estava no mesmo corredor, a falar com a Cassandra e de repente vi um homem e uma mulher de mãos dadas ao fundo do corredor. Agora tudo…
tudo fazia sentido.



- Huh… eu tenho de… - Gaguejou a mãe.
- Sim… também eu… então… até logo!
- Sim… até… l-logo.
Os dois viraram costas um ao outro e seguiram para salas de aula diferentes. A mãe, como pura adolescente, foi a correr para a sua amiga Emily, não contendo os seus risinhos sonoramente histéricos, coisa que eu, definitivamente, não herdei dela.
Estava tudo a encaixar na minha cabeça, como um
puzzle. Nem queria acreditar que os meus pais se conheceram no corredor da minha própria escola…

Capítulo 47



Caminhei pelo corredor até chegar ao fundo onde a fraca luz emitida pelos candeeiros não chegava. Olhei para as duas últimas portas, e reparei que as vozes provinham da porta da direita, fazendo-me encostar a face à mesma, tentando escutar aquela conversa. Mas rapidamente me senti uma grandessíssima pateta, por me estar a esconder de pessoas que nem sequer me vêem. Abri a porta, e deparei-me com um quarto, que, pela sua decoração infantil e alegre, dava a entender que era de uma criança.
Olhei para todos os lados, e consegui avistar, sentados na cama da esquina do extremo do quarto, uma mulher e um menino. As suas feições gorduchas e indefinidas pela juvenilidade, óculos apoiados no pequeno nariz redondo. A sua cara não transmitia tristeza, mas também não transmitia uma felicidade e uma alegria contagiante. Olhava para a mulher, que provavelmente era sua mãe, com uns olhos ternos e brilhantes.
- Filho, tu tens de dormir! Olha só para as horas! – Exclamou a mulher com o seu braço a envolver os ombros da criança.
- Mas eu não tenho sono… e tenho medo dos trovões.
- Os trovões estão lá fora, não cá dentro! Agora dorme, Dave.



Foi aí que eu me apercebi quem era aquela criança. Só podia ser ele, já que me deparei com a Sarah, quase de certeza que era o Dave, e além disso, os seus olhos por detrás daqueles óculos não enganavam ninguém.
- Posso dormir contigo? – Perguntou Dave com um brilho visível de longe nos olhos.
- Tu já sabes que o pai não deixa, e além disso estás a ficar crescido, tens de te habituar a dormir sozinho!
A mãe de Dave começou a esfregar a sua bochecha que se encontrava incrivelmente negra, como sangue pisado. Estava com uma cara de nítido desconforto e os seus olhos semicerrados.
- O que é que tens na cara? – Perguntou Dave.
- Nada… não é nada filho. Foi só… huh… um acidente no trabalho. Isto passa! Agora dorme!
Dave já bocejava sonambulamente, aninhando-se nos seus fofos e coloridos cobertores, abraçando a sua ovelha de peluche que soltava um suave guincho quando era apertada.
A sua mãe empoleirou-se na cama e deu-lhe um suave beijo na testa, desejando-lhe boa noite. No minuto a seguir, encaminhou-se para a porta, onde apagou as luzes e saiu.
Boquiaberta, aproximei-me da cama e observei o Dave a dormir.



Estava ferrado no sono, com os braços imobilizados a abraçarem a ovelha de peluche. A sua respiração, lenta e ligeira, fazia-me lembrar de quando eu era pequena, que nas noites em que sentia medo de tempestades ou que simplesmente não conseguia dormir, fechava os olhos e aconchegava-me confortavelmente nos cobertores, pensando em coisas alegres e divertidas, e imaginando-me dentro desses pensamentos, contudo, sabia que se abrisse os olhos, já o escuro e a forte tempestade me cobriam os olhos de medo e receio, portanto nem me atrevia a abri-los. Uma sensação de que me lembro tão bem, como se a tivesse vivido no dia anterior.
Ao olhar para o Dave, tinha uma pequena ideia de que ele sentia exactamente o mesmo, pois não mexia nem um músculo e nem abria os olhos, desenhando o leve sorriso na cara.



Aqueles minutos, que pareceram horas, de silêncio foram rompidos por um grito de uma mulher. Um grito bastante alto que fez acordar o Dave num sobressalto.
- Mãe? – Murmurou.
Saltou da cama, trespassando, incrivelmente, o meu corpo, como se não passasse de fumo. Abriu a porta provocando um leve chiar vindo da mesma. Correu com as suas pequenas pernas pelo corredor, chegando à primeira porta do mesmo. Era de lá onde vinham os gritos.
Dave aparentava agora uma expressão apavorada e receosa. O sorriso que se salientava da sua face na cama, tinha sido rapidamente aniquilado, vindo um pavor e um medo sobrenatural a substituir.
- Mãe? – Repetiu Dave, com a sua, quase inaudível, respiração muito acelerada.
- Não! Não! Robert, por favor! Eu suplico-te nã… - A sua mãe não tinha concluído a sua sofredora frase persuasiva pois rapidamente se ouviu o som de um estalo, fazendo-se ouvir o estrondo do seu corpo a cair no chão.
- Tu vais aprender… - Vociferou uma voz masculina vinda do interior do quarto, os gritos, choros e súplicas quase a abafarem-lhe a voz. – Que quem manda aqui, sou eu!
Dito aquilo, ouviu-se outro estrondo, desta vez, abafado por estilhaços a estenderem-se pelo chão.



Dave levou a sua pequena mão ao peito, com os seus olhinhos arregalados pelo medo.
Eu, não me limitei a permanecer naquele corredor a ouvir os gritos e, dado o facto de que eu não passava de um fantasma, interceptei a porta, como se esta não passasse de uma fina nuvem de fumo.
Quando entrei no quarto, o cenário foi aterrador.
Densas gotas de sangue sujavam aquele chão de madeira envernizada, o espelho que se achava encostado à parede estava tombado, rodeado de estilhaços cortantes. E a mulher, completamente desfigurada. A sua cara coberta de sangue, a sua maquilhagem esborratada, a sua roupa rasgada, as lágrimas a brotarem dos olhos caindo sobre os lençóis de sangue que em sua volta se estendiam.
- P-Por favor… p-pára… suplico-te… - Rastejou a mulher, mas mais um bruto estalo se rompeu na sua face, fazendo-a cair sobre os estilhaços do espelho.



O homem, com os seus olhos verdes muito claros, o seu cabelo loiro esbranquiçado e o seu robe verde com padrões florais manchado do sangue da sua mulher...
- Isto foi uma amostra do que tu vais receber se me voltares a desobedecer! Eu disse-te, que o puto tinha de se tornar um homem, mas não, lá foi a boa mãe conforta-lo com os seus medos e pesadelos!



- Ele estava a chorar… Robert… - Soluçou a mulher, erguendo custosamente a sua cara repleta de golpes provocados pelos estilhaços.
- ELE QUE CHORE! ARGG! – E com isto, um pontapé embateu na barriga da mulher.
A mulher estendeu-se pelo chão manchado de sangue, inconsciente.



O meu coração já se salientava da minha camisola. Embora o medo e a ânsia estivessem a tomar conta de mim, uma ponta da raiva e incompreensão invadiram-me os pensamentos.
Porque razão aquele assustador e sinistro homem agredia a sua esposa daquela forma, por uma razão de afecto e carinho entre ela e o seu filho? Porquê toda aquela raiva?
Ajoelhei-me diante da mulher, estendida naquele chão. Eu estava com a cara visivelmente pálida, e estremecia como gelatina. Olhei para o lado, e vi que o homem se preparava para sair daquele quarto… eu aguardei o pior.
Levantei-me rapidamente e corri até à porta indo ter ao corredor. O homem já fitava o pequeno Dave, com uma cara enraivecida.
- Não… - Murmurei.
O homem agachou-se com uma cara apática, e com um tom de voz, quase agradável, embora irónico, sussurrou:
- Estavas a ouvir a conversa não estavas?
- N-Não… não papá… - Disse o Dave com uma voz trémula.
O homem levantou-se, agora com a respiração acelerada e enraivecida, como um touro pronto para atacar.
- Estavas… - Vociferou.



E dito aquilo levantou a sua pesada mão, pronta para atacar o pequeno Dave.
- NÃO! NÃO, POR FAVOR, NÃO! NÃO! O DAVE NÃO! NÃO FAÇA ISSO! TENHA PIEDADE! NÃO! – Gritei com todas as minhas forças, mas não me adiantava.
A sua pesada mão embateu na pequena cara do Dave, seguida de um, quase inaudível, guincho por parte da criança.



Capítulo 46

Mergulhei no poço sentindo um torturante nó no estômago e uma espécie de choque eléctrico a percorrer-me as costas. Mal entrei naquelas águas cristalinas, mas lamacentas, comecei logo a sentir aquele inevitável frio a percorrer-me o corpo todo como se estivesse dentro de um congelador. A tentar abrir os olhos a todo o custo, consegui avistar o remoinho das minúsculas bolhas de água a aproximar-se cada vez mais de mim. Rodeou-me o corpo, fazendo-me rodopiar incansavelmente, fazendo o meu corpo contrair-se e encolher-se pela previsão do que ia acontecer, pois sabia que não era a primeira vez que mergulhava naquele poço. O remoinho fez-me levitar naquelas águas imóveis, levando-me à superfície.



Empoleirei-me no parapeito de pedra áspera e escura, e, juntamente com uma forte tosse e a sensação de que tinha engolido uma tonelada água pelo nariz, saí do poço. Olhei para cima e a porta da saída daquele alçapão achava-se entreaberta, deixando penetrar alguns raios de Sol. Subi as escadas num passo acelerado, com o coração lotado de esperança e ao mesmo tempo de medo. Na verdade, o medo prevaleceu acompanhado de uma forte e visível petrificação do meu corpo.



Estava tudo igual, nada mudara quando mergulhara naquele poço. A única coisa que se encontrava diferente, era a campa de Susan Bagshot que já se encontrava coberta de terra húmida e recentemente posta, e diante dela encontrava-se o coveiro que já derramava lágrimas acompanhado do seu amigo vestido a rigor.



O meu coração quase me saltava do peito, e o desespero, outrora atenuado e quase imperceptível, finalmente trepou pelo meu coração proporcionando-me uma profunda tristeza. Não havia maneira de sair daquele mundo, daquela reviravolta no tempo.
Andei pelos carreiros de pedra cinzenta que serpenteavam o cemitério e saí das vedações do mesmo. Olhei em frente, e os bosques encontravam-se nitidamente densos e verdejantes, as casas envelhecidas e os prados a ladear toda aquela área.



As lágrimas começaram a escorregar-me pela cara em abundância. Tudo me parecia impossível de fazer, tudo me parecia sombrio e nostálgico… tudo me parecia… um buraco negro no qual eu entrava progressivamente não vendo um único rasgo de luz no seu fundo.
Sentei-me no chão, encostando-me a uma face de uma parede da igreja. Encolhi-me, apoiando a cabeça por entre os joelhos. Fechei os olhos, ainda com as lágrimas a brotarem dos mesmos, e tentei esquecer que estava num mundo completamente diferente do meu onde em todo o lado se erguiam sombras e lugares aterradores. Do qual eu não tinha saída. Consegui ouvir os melódicos cânticos dos pássaros que repousavam nas verdejantes árvores que flutuavam com o vento que se fazia sentir naquele momento.
Lembrei-me das frases em latim meticulosamente gravadas no parapeito do poço, do qual se destacava: Incidit in flammam cupiens vitare favillas (Saltar das brasas e cair nas labaredas). Repetia-as em voz baixa inúmeras vezes, tentando descobrir o significado daquelas palavras. Alguma pista, alguma maneira de me ajudar a sair dali. Mas invés disso, o vento começou a soprar cada vez mais fortemente provocando a debandada de vários pássaros que repousavam nas árvores, levantando voo a grasnar, subindo em espiral contra aquele céu nacarado.
Levantei-me, com os cabelos a esvoaçar, tapando-me a visão. Olhei em redor, e tudo se desfez em sombras, desvanecendo-se no meio do vazio. O vento não parava de soprar, e um enorme remoinho, semelhante a um tornado, cercou-me o corpo, que estremecia anormalmente.
Fechei os olhos com todas as minhas forças, evitando aquele vento que soprava incansavelmente embatendo na minha face. De súbito, senti o meu corpo cair, obrigando o meu coração a ser envolvido por uma enorme e forte ânsia. De resto, só me lembro da forte e dolorosa pancada que senti quando caí num chão, aparentemente, de madeira e a ser tentada a fechar os olhos e a adormecer.





Passados incertos momentos, acordei, deitada no chão de madeira macia e envernizada. Levantei-me lentamente, ainda não conseguindo abrir completamente os olhos. Pus-me custosamente de pé e olhei em redor.



Estava no hall de entrada de uma casa acolhedora e ricamente decorada. O hall era grande e amplo, com um aparador de madeira escura numa parede com uma pintura bastante clássica, na qual repousava um quadro antiquíssimo, pelos vistos. Do lado oposto, encontrava-se uma pequena mesa, na qual se encontrava um antiquado telefone. Na parede, onde essa mesa de achava encostada, empoleirava-se um espelho emoldurado de madeira envolta por uma espessa camada de talha dourada. O chão chiava com os meus passos, à medida que me ia deslocando em direcção a uma larga porta de madeira. Estava com a minha mão a escassos milímetros de distância da maçaneta de cobre, quando um intenso e sonoro trovão me fez dar um repentino salto, em reacção ao enorme susto que apanhei. A luz do trovão interceptava o vidro da porta da entrada, iluminando, assustadoramente, todo aquele hall com uma florescente e branca luz.



Rodei calmamente a maçaneta de cobre enferrujado da porta de madeira, que dava acesso a mais um corredor com diversas portas. O silêncio predominava naquela casa, parecendo abandonada. A escuridão ia-se intensificando à medida que me aproximava do fundo do corredor, fazendo o meu coração bater extremamente depressa, como fora de costume naquelas últimas horas.



Olhei para o tecto, e as lâmpadas dos candeeiros lá pendurados piscavam inúmeras vezes dando ideia de fundição.
Andei trémulos a amedrontados passos pelo recto corredor olhando para todas as portas na esperança de ouvir alguém. Mas não se ouvia nada, apenas os roídos das lâmpadas fundidas dos candeeiros do corredor.



Comecei a ficar assustada, e com receio de estar naquela casa sinistra e preparei-me para sair daquele corredor, para depois sair definitivamente da casa. Mas rapidamente virei-me para trás, quando já estava a abrir da porta da saída do corredor. Ouvi vozes, que interagiam umas com as outras. Uma delas, era de uma criança, outra, muito leve e doce, era de uma mulher. As vozes vinham do extremo do corredor, por detrás da última porta.