Capítulo 45

Levei as mãos tremulamente à cabeça, fechando os olhos e tentando-me capacitar a mim própria de que aquilo não passava de um sonho e na esperança de que, quando abrisse os olhos, estivesse junto à Igreja de tijolo velho e amarelo, sem a Sarah em pequena, sem o cadáver de Susan Bagshot e sem aquele coveiro. Mas para grande desilusão, quando voltei a abrir lentamente os olhos, continuava à porta daquele Orfanato, da qual o casal Mello e a Sarah saiam, despedindo-se de Miss Beatrice e acartando as malas de Sarah.



Enquanto desciam o pequeno lance de escadas da entrada, que levava a um verdejante jardim, os senhores Mello iam enumerando a quantidade de brinquedos e divertimentos que Sarah teria em casa, mas esta continuava com uma cara apática e lunática, agarrando o seu urso de peluche e com a mão forçadamente entrelaçada na da sua nova mãe.



- Vais ter um quarto gigante para tu e… - Katie olhou de relance para o esfarrapado urso de peluche - … O Teddy brincarem! Uma sala para veres desenhos animados na televisão e comida deliciosa!
- Têm pudim? – Perguntou lentamente Sarah, olhando para Katie com um ligeiro sorriso, provocado pela recordação de um suave e doce pudim a entrar na sua boca, que, provavelmente, há muito que não comia, dada a limitada e curta ementa daquele orfanato, que eu tive oportunidade de observar.
- E ainda vais ter um elevador de comida! Vai ser fantástico! – Exclamava asperamente o senhor Jordan, acartando as malas de Sarah.
As vozes foram-se atenuando à medida que o casal virava a esquina do muro que circundava o Orfanato e entrava na Limusina com cores metálicas e faiscantes.
Vagueei pelas ruas completamente diferentes das que conhecia. Olhava em redor, e as mesmas encontravam-se visivelmente desérticas, e as poucas pessoas que lá vagueavam, apenas se limitavam a olhar para o chão com uma cara de desespero e que retratava dor e sofrimento que o trabalho exercia sobre elas. Ninguém olhava para mim… ninguém falava comigo. Sentia-me como se fosse um fantasma que apenas pairava por aqueles ares sem ninguém dar por nada, e ao mesmo tempo, sentia que estava num mundo completamente paralelo e desconhecido. Mas não… todos estes pensamentos e especulações estavam erradas. Não sabendo como e não sabendo porquê todos os factos coincidiam na perfeição: Susan Bagshot, mulher que aparentemente estava morta e enterrada há mais de 22 anos, nesta espécie de “mundo paralelo” tinha morrido há nem uma hora; a Sarah com 7 anos, num orfanato deprimente e melancólico; a igreja completamente diferente… Não havia dúvidas… eu tinha regressado ao passado.
Foi então, que me lembrei do campo de Rugby. Tinha quase a certeza que se entrasse lá eu voltaria a ficar mais ciente da realidade e do que me rodeava, pois estava com a sensação que os meus pés deslizavam sobre as estradas e calçadas de terra batida.



Havia mais árvores do que o costume, agrupadas em molhos formando densos bosques sombrios e nostálgicos, qual silêncio que pairava entre os troncos de cada árvore. As casas eram em muito, muito menos quantidade, dando o acolhedor e ao mesmo tempo aterrorizador aspecto de uma aldeia isolada do mundo.





Das bizarras e mal frequentadas tabernas, provinham gritos, conversas paralelas e estilhaços de copos e garrafas a estenderem-se pelo chão, e, claro, a antiquada e deprimente música aos altos berros.
Calcorreei as imensas e antigas ruas de Fort Sim, como nunca as vi, até que cheguei ao lugar onde era suposto haver um campo de Rugby, enorme, que me conseguisse trazer de volta a calma, serenidade e sonhos que estavam mais que apagados no meu peito. Mas invés disso, deparei-me com algo ainda mais perturbador e que me fez implorar regresso ao meu verdadeiro mundo.





O terreno que suportava as extensas bancadas e o húmido relvado do campo de Rugby, não passava de um monte de terra molhada e nauseabunda. Nos primeiros instantes limitei-me a recusar aquela visão… aquela… ilusão. O campo tinha desaparecido, juntamente com o bem-estar, tranquilidade e sonhos que o mesmo me transmitia. Invés disso, um frio medonho e sinistro trespassou-me a alma, deixando-me sem forças para falar… para gritar e implorar que me salvassem daquele mundo completamente paralelo, que era o meu próprio passado. Não queria encarar mais sombras, embora ainda apenas tivesse encarado duas. Senti-me extremamente estúpida por ter a esperança de encontrar um campo de Rugby numa aldeia isolada.



Empoleirei-me sobre o muro de mármore com aspecto gélido e manchado de líquenes que rodeava aquele monte de terra lavrada. Apoiei o queixo sobre meus punhos, olhando para o céu, enublado e aterrador. Um leve, quase imperceptível, desespero começou a espalhar-se no fundo do meu coração. Não me afligi… estava ciente que gritar e pedir ajuda não me servia de nada. Não me servia de nada entrar em pânico quando a única pessoa que me podia salvar era eu própria.
Comecei a pensar… a remexer nos meus pensamentos como quem procura um livro numa enorme biblioteca… como quem procura uma agulha num palheiro. Nada me ocorria, só a imagem daquele homem encapuzado a empurrar-me para aquele poço. Foi então, que levantei a cabeça repentinamente e mais uma vez fiquei lotada de esperança. O poço… Se o poço me levou ao passado, podia levar-me ao presente! Como uma ligação entre gerações, como uma passagem!
Corri pelas extensas ruas, observando o Sol a esconder-se por detrás das colinas de Fort Sim progressivamente, fazendo-me lembrar que, apesar de o meu relógio apontar as 13 horas, naquela aldeia já estava a entardecer, forçando as pessoas a regressar rapidamente a suas casas.
Cheguei à igreja, de pedra perfeitamente acinzentada e polida.



Por momentos, tive uma estranha curiosidade de contemplar o interior daquela igreja nos seus tempos mais bonitos e recentes. Sim, porque aquela igreja, sendo tão linda por fora, com certeza que era ainda mais linda no seu interior, mas o meu corpo mostrava-se mais disposto a levar-me de novo àquele alçapão.
Estranhamente, o alçapão foi o único lugar que não mudou nesta reviravolta no tempo.



Não sabia porque razão, mas também não estava disposta a sabê-la. Quando cheguei ao fundo do alçapão com as suas esquinas repletas de teias de aranha e as sepulturas dos três Bispos cobertas por uma fina camada de pó, fixei o poço.



Por momentos, os meus passos tornaram-se hesitantes, mas a determinação que me envolvia o peito era mais forte do que tudo, o que me levou a mergulhar, uma vez mais, naquele poço nauseabundo e lamacento.

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