Capítulo 68

Não sabia para onde o Jake me levava. Talvez para um sítio isolado, onde pudéssemos estar sozinhos num ambiente calmo. Por momentos pensei no Campo de Rugby, mas o caminho que levávamos era completamente diferente do que eu conhecia.
- Jake, para onde vamos? – Perguntei, um pouco atónita.
- Já vais ver.
Começámos a entrar numa rua que eu nem sabia que existia em Fort Sim. Uma rua ampla e de uma grande dimensão, com um conjunto de casas modernas que lhe davam um aspecto muito acolhedor. Era um ambiente completamente diferente do que me habituara a viver.
Quando finalmente parámos, fiquei perplexa com o que vi. Estava diante de uma espécie da mansão moderna. As paredes eram todas brancas, com janelas de grandes dimensões que possibilitavam a visualização do interior da casa.


E a minha avó muito provavelmente julgava que eu estava nas aulas.
O Jake levou a mão ao seu bolso e tirou um porta-chaves em forma de bola de Rugby, e, seleccionando a chave maior, abriu a porta daquela casa, e foi aí que percebi que ele me levara a sua casa.
Abriu a porta, e fez-me sinal para entrar primeiro. Entrei e consegui logo sentir o cheiro a novo inundar-me as narinas.
O Hall de entrada era grande, comparativamente com o meu. Tinha uma planta enorme encostada a um canto e, paralelamente a porta estava uma mesinha com um telefone e molduras com fotografias do Jake e do irmão quando eram pequenos. Perpendicular a esta, viam-se dois cadeirões vermelhos que pareciam novinhos em folha.


O Jake foi á cozinha beber água, e eu entretive-me a observar a sala, enquanto esperava por ele. Tal como o Hall de entrada, também a sala era moderna e bonita. Grande e ampla, tinha sofás pérola que pareciam igualmente novos, tal como o resto da habitação. Ao fundo da sala estava uma estante com livros e uma mesa grande com seis cadeiras que funcionava como sala de jantar, como na minha casa. Tinha tudo um ar acolhedor e simpático, e sentia-me em casa.


- A tua casa é muito bonita... é moderna! – Exclamei, ainda olhando em redor espantada.
O Jake riu-se, fitando a minha expressão agradavelmente surpreendida.
- O meu pai, como é pintor, gosta de ter a casa moderna e com as cores a combinarem... E a minha mãe agradece, claro! - Disse ele, com um sorriso caloroso. – Anda… vamos para o meu quarto.
- Não está ninguém aqui?


- Claro que não… O meu pai foi para uma exposição em Londres, e só volta amanhã, a minha mãe está a trabalhar e o meu irmão está na escola. Por que achas que eu te levei aqui? – Lançou-me um olhar um pouco irónico, que me fez varrer a sala com os olhos, tal era a vergonha. – Anda.
Subimos umas escadas de pedra macia com corrimão de ferro brilhante. As escadas iam desembocar a outro Hall. O mesmo tinha quatro portas. Provavelmente com acesso aos quartos.
O Jake encaminhou-me ao seu quarto, e eu fiquei ainda mais surpreendida. Aquela divisão distinguia-se perfeitamente do resto da residência. Este era constituído por cores azuladas e negras. O chão era de madeira, com um tapete um pouco amarrotado ao lado da cama. Tinha uma cama que dava a ideia de ter luzes em néon na sua base.


A parede estava praticamente coberta por prateleiras, cheias de taças e troféus, bandeiras a representarem Os Lamas, a sua equipa.


Havia outra prateleira com um capacete de Rugby um pouco mais pequeno que a sua cabeça. Notando a minha expressão interessada para esse objectos, o Jake explicou-me:
- Esse foi o capacete que usei no meu primeiro jogo de Rugby. Tinha 10 anos. – Soltou uma gargalhada. – Quando tomei posse da bola, em vez de correr, esperei aplausos do público, mas só conseguia ver caras preocupadas, pois, nesse mesmo instante, metade dos jogadores da equipa adversária atiraram-se para cima de mim, a fim de me tirar a bola, com sucesso.
Soltei uma gargalhada um pouco mais intensa.
- Não acredito… e agora és capitão da equipa…
- Pois sou… - Confirmou ele, com uma expressão triunfante.
O Jake sentou-se na cama, convidando-me para sentar também. Sentia-me à vontade naquela casa, como se fosse minha. Não me sentia como se fosse na casa de um estranho, onde eu tivesse vergonha de me sentar onde quer que fosse, e permanece-se quieta, de pé, o tempo todo.
Sentei-me.
- Espero que não te importes com a desarrumação.
- Não… podes crer que o meu quarto está bem pior… estava


- Tu não fazes mesmo tenções de voltar para tua casa pois não?
- Por enquanto não, Jake. Estou bem onde estou agora. A minha avó trata-me muito bem e eu sinto-me bem ao seu lado.
- Nem acredito na quantidade de coisas que passaste na semana passada. Nem me passava pela cabeça.
- Sim… e confesso que ainda estou surpreendida de teres acreditado em mim…
- Eu sempre acreditarei em ti… sempre!


E com isto, deu-me um caloroso beijo.


- As coisas também não mudaram muito na tua ausência. – Continuou - A Sarah continua a mesma ridícula de sempre, quase a implorar que os jornalistas lhe tirem fotografias, e a Cassandra… bem… essa até mudou um pouco.
- Mudou? Ah… já sei. Fez uma permanente ao cabelo, foi? – Perguntei, friamente.
- Não! Ela tem estado abalada, Melody. Abalada com qualquer coisa. Até nas aulas tem estado um pouco lunática. Acho que ela tem saudades tuas…
Soltei um riso de escárnio ao ouvir a palavra “saudade”.
- Jake… eu sei que me queres reconfortar, mas todos nós sabemos que a Cassandra nunca vai mudar. Vai ser sempre a mesma obcecada pela Sarah e pela popularidade.


- Tu não percebes? Ela já não anda com a Sarah! Às vezes fala com ela, e chegam a tirar fotografias juntas, mas toda a gente percebe que ela já não está tão “fanática” pela Sarah. Eu acho que ela mudou.
- Isso já não me importa… não quero saber. A Cassie… Cassandra, escolheu o seu caminho… e eu… escolhi o meu.

Capítulo 67

- Jake… Jake! – Um dos amigos do Jake sussurrou – É a tua miúda! A Melody!
Ele virou-se bruscamente para trás, assim que ouviu o meu nome. Os seus amigos precipitaram-se para as salas de aula, ao ouvirem o toque para a entrada, mas o Jake permaneceu a olhar para mim com os seus olhos rigorosamente arregalados.
- Melody! – Exclamou, dando-me um forte abraço. - Onde é que tu estiveste? O que é que te aconteceu?


- Olá Jake… é uma longa história…
- Pois! Eu sei! Ainda para mais, não me atendias o telefone!
- Pois… quanto a isso… o meu telemóvel… molhou-se…
- Molhou-se?
O Jake estava pateticamente confuso. A sua cara de preocupação deu-me uma ígnea vontade de o beijar, mas contive-me. Tinha de lhe contar, pelo menos parte dos acontecimentos daqueles últimos dias.
- Jake… eu preciso de falar contigo…


- Oh, que novidade! Eu quero saber de tudo… primeiro: porque é que faltaste esta semana inteira?
Peguei suavemente na sua mão, e encaminhei-o ao bar da escola. Ele ainda estava com uma expressão atónita com tudo aquilo, talvez porque reparou na minha cara um pouco abalada.
Comprei dois sumos, e sentei-me com ele numa mesa afastada da multidão.
- OK, explica-me!
Hesitei durante uns momentos, mas pensei que, como ele é meu namorado não deve haver segredos entre nós… certo?
- Bom… resumidamente… Desde o início do ano que tenho tido visões, alucinações, que, no momento, não faziam sentido nenhum na minha cabeça, mas depois fizeram, quando caí num poço e regressei ao passado e descobri toda a verdade, que o meu pai me mentiu durante dezoito anos e que, até agora, apenas mostrou que nunca gostou de mim. Depois é a Sarah e o Dave, também regressei ao passado deles e descobrir coisas estrondosas. Mais tarde, descobri que o homem mais estranho que tinha visto na minha vida era meu tio, depois, quando voltei para o Presente, fui obrigada a encarar o meu pai… discutimos, ele bateu-me, e desempenhou o seu papel de mentiroso melhor do que ninguém. Agora estou a viver com a minha avó, numa casa na praia…


- WOW… Melody! Calma! Tu estás bem? É que isso parece um pouco… impossível… Do que é que estás a falar?
Foi nesse momento que me arrependi profundamente de lhe querer contar tudo. Quem é que iria acreditar numa história daquele género??

***

Nunca percebi muito bem para que servem as aulas de filosofia. É uma pura perda de tempo! Para que serve saber o que aconteceria ao ser humano se este vivesse para sempre?! Daria tudo para ter estado a gastar o dinheiro do meu cartão de crédito em roupas novas! Mas, em vez disso, estava a escrever infinitos apontamentos no meu caderno.


A feiosa da Melody e o meu Jaky faltaram á aula... não é que aquela Melody faça falta, na verdade é um descanso para os meus olhos. Mas o Jaky devia estar na aula a babar-se por mim. Mas não só não estava na aula, como também não se baba por mim. Como, como é que ele pode não gostar de mim? Sou rica, famosa e bonita! Tenho tudo o que um rapaz pode querer! Será que ele não tem olhos na cara?!
Começo a fartar-me um bocado dos jornalistas e nunca pensei dizer isto! Daí a nada, vou ter de fazer um lifting para esticar as rugas que eles me põem, sempre a disparar aquelas máquinas fotográficas! Ainda por cima, aquela inútil da Cassie também anda meio estranha. É o que dá contratar gente reles para trabalhar para mim! Antes, ela parecia uma anormal, sempre atrás de mim como uma cadela. Ficava pateticamente entusiasmada quando me arrumava o cacifo e tinha a mania de me seguir nas reportagens. Agora não faz nada disso! Que paciência que eu tenho de ter para aturar esta gente!


***

- Pronto… foi isto que aconteceu… O meu pai mentiu-me. A minha mãe esteve sempre morta…
- Meu Deus, Melody. Sinto muito… Isto parece surreal…
- Eu sei… acredita, eu pensei o mesmo.
- Então era por isso que tu estavas sempre lunática quando falava contigo?


- Basicamente…
- Deves estar de rastos…
- Bem… hum… sim...
O Jake levantou-se, pegou-me carinhosamente no braço. Quase que conseguia adivinhar o que ele ia dizer, ou fazer.


- Bom… então eu vou tratar de ti… Segue-me…
- Jake… a aula!
Ele virou-se para trás e chegou-se tão perto de mim que quase não conseguia respirar.
- Segue-me!


Capítulo 66



No fim de tomar aquele pesado pequeno-almoço que a minha avó fez questão de preparar, tentei arranjar um pretexto para permanecer naquela cozinha, ajudando-a a lavar a loiça, mas as insistências dela, exigindo que eu fosse tomar banho, eram infinitas. Não tinha maneira de não ir para a escola, tinha de ir mesmo que lhe implorasse para ficar.
Não conseguia suportar a ideia de ter de voltar ao buliço de Fort Sim, e sair daquele paraíso, onde ninguém me podia encontrar e onde eu me sentia realmente bem. Ainda nem tinha saído de casa, e já tinha saudades de ouvir o fluxo e refluxo do mar, e o som das ondas brancas a embaterem nas rochas da costa.


Pela janela do quarto, conseguia ouvir algumas conversas paralelas de alguns pescadores que se começavam a concentrar no cais junto da praia, pegando nas suas canas e colocando o isco.
Considerava a pessoa que vivesse ali perto, uma pessoa cheia de sorte, por não ter de encarar os problemas e as dificuldades do centro da cidade, que eu estava prestes a encarar.
Dirigi-me à casa de banho e tomei um duche demorado, embora soubesse que já estava ligeiramente atrasada. Assim que fechava os olhos, várias imagens fragmentadas da minha mãe passavam-me pela cabeça, fazendo com que não os quisesse abrir de novo. A saudade que sentia por ela era mais forte naquela ocasião, com aquela relíquia a envolver-me o pescoço, e que eu prometi a mim mesma nunca mais largar.
O imperativo chamamento da minha avó, que, por uma fracção de segundo, me fez lembrar o meu pai, fez-me sair do chuveiro e vestir-me rapidamente. Vesti uma roupa mais quente, que a minha avó me tinha engomado. A sua dedicação e esforço para me agradar eram de louvar. A minha avó tratava-me realmente bem, e acolheu-me em sua casa sem hesitar.


- Tens tudo o que é preciso? Canetas, mala… a mala! Está muito pesada, querida?
- Não te preocupes, avó! Eu estou bem! A sério! Hoje vou ter poucas disciplinas…
- Ah, bom. Ao menos lembras-te do teu horário!
- Avó, eu não faltei assim tantos dias à escola!
- Uma semana! E já foi suficiente! No meu tempo nem um dia podia faltar! Estes dias deviam descontar nas tuas férias de Natal!


- Que exagero, avó!
- Vai lá para a escola. Tem um bom dia querida!
E dito isto, deu-me um carinhoso beijo na cara, e acompanhou-me à porta. Nem podia acreditar que estava a alguns passos do lugar que menos queria estar naquele momento.
Assim que avistei a escola, o nervosismo começou a aumentar e senti que as pernas não cediam.


Toda a atmosfera envolvente parecia diferente... era como se fosse a primeira vez que lá ia. Fiquei a ver as pessoas a trespassarem os portões, e alguns grupos de alunos encostados ao muro que ladeava a escola. Pareciam todos felizes e animados... mas eu, continuava sem coragem para sair do cantinho onde estava escondida e encarar a minha turma depois de uma semana ausente.


Estava quase na hora do toque da entrada, mas eu não era capaz... De repente, uma limusina preta parou em frente ao portão da escola. O motorista abriu a porta e a Sarah saiu. Era impossível vê-la, pois precipitaram-se sobre ela montes de jornalistas de microfones em punho e máquinas fotográficas a dispararem flashes sem cessar.



Assim que ela transpôs os portões, sempre com aquele ar imaculado, não pude deixar de pensar na verdade que ela se esforçara por esconder. Ela era órfã. E todo aquele rebuliço que ela fazia girar á sua volta, sempre que aparecia em público, era um refúgio. Como haveria de encará-la, com a verdade toda descoberta?
Quando me lembrei de tudo aquilo que ela me fizera, desde os insultos ao facto de me ter afastado a Cassie, não pude negar aquilo que pensava dela: A verdade é que ela não passava de uma rapariga rica e famosa que achava que se podia esconder da tragédia familiar que se abatera sobre ela.
Avancei alguns passos, com um misto de hesitação e nervosismo, e pisei a relva do pátio da escola. Alguns colegas meus, da minha turma do ano anterior, começaram a olhar para mim e a seguir-me com o olhar, como se estivessem a ver um estranho, mas rapidamente retomavam as suas conversas, ora sobre o jogo de Futebol da noite anterior ora sobre como desprezavam os estudos.
Abri a porta da entrada do pavilhão da escola, e consegui logo ouvir as conversas e os risos dos milhentos alunos que se concentravam no átrio da entrada. Não conseguia ver ninguém da minha turma, para minha grande satisfação, mas sabia que os tinha de encarar mais tarde ou mais cedo, ou no Bar ou na sala de aula.
Espremi-me por entre a multidão de alunos, e quando consegui chegar ao meu cacifo, nem queria acreditar no que os meus olhos viam. O meu coração começou a pulsar aceleradamente, e quase me faltavam as forças nas pernas, ao mesmo tempo que controlava aquela vontade de correr para os seus braços. O Jake estava de costas para mim, a falar com os seus amigos, mesmo ali ao meu lado.


Capítulo 65

Confesso que fiquei ligeiramente ansiosa por saber o que a minha avó me ia dar. Podia ser qualquer coisa… um livro? Um anel? Tudo me passava pela cabeça, mas depois desvanecia-se com a ansiedade.
A minha avó conduziu-me até uma pequena sala, com uma secretária velha e um sofá já desgastado. Distinguia-se do resto da casa, pois, apesar de velho, parecia que a avó o preservava como uma relíquia.
Dirigiu-se a uma pequena caixa de madeira com uma camada esbranquiçada de pó na sua tampa, e abriu-a. O interior dessa caixa não se comparava com o exterior, pelo brilho que saia de lá. No seu interior estava um colar banhado a ouro, com uma pequena medalha parecida com uma moeda, igualmente banhada a ouro.
Tirou-a cuidadosamente da caixa, como se fosse muito frágil, e envolveu-a no meu pescoço. Sentia o ouro a esfriar-me a pele, mas o meu coração pulsava anormalmente.


- Este colar já passou pelos vários antepassados femininos da nossa família… e já passou pela tua mãe! Quando ela faleceu, eu prometi a mim mesma que to dava quando completasses dezoito anos! É teu… usa-o… guarda-o com a vida… - As lágrima começaram a brotar dos olhos da minha avó, pela emoção de me ver com aquele colar.
Eu sentia-me igualmente emocionada. Tinha uma recordação da minha mãe, mesmo junto de mim. Peguei na medalha de ouro, e acariciei-a.
- Avó… eu… eu não sei o que dizer… Obrigada…
E com isto, dei-lhe um forte e carinhoso abraço. Sentia-me orgulhosa e satisfeita por possuir uma coisa que a minha mãe já usou. Era como ter uma parte dela junto de mim. Como se ela tivesse sido imortalizada.


Olhei-me ao espelho, com o colar a envolver-me o pescoço. O ouro ainda me causava arrepios na pele, pois não tinha aquecido, mas isso pouco ou nada me importava. Eu era como se fosse a herdeira daquele colar… a próxima geração a usá-lo. Sentia-me realmente satisfeita por isso.


- És tão parecida com ela… com a tua mãe. E com esse colar ficas igualzinha, quando ela tinha a tua idade…
As lágrimas começaram a cair-me pelo rosto, lembrando-me da mãe que nunca pude tocar. Mas aquele colar era a maneira mais palpável de estar perto dela…
A minha avó aproximou-se de mim, e, pegando-me suavemente nos ombros, disse-me:
- Vamos dormir… já é tarde…
No dia seguinte, acordei quando o sol interceptou a janela e se refractou na minha face. Espreguicei-me demoradamente e abri os estores. Na praia, as ondas a rebentarem na costa captaram a minha atenção. Fiquei a mirá-las durante bastante tempo, a controlar a vontade que sentia de lá ir molhar os pés. Mas sabia que a avó nunca me ia deixar. O Inverno chegara mais rigoroso que nunca. Agora os dias mostravam-se nublados e frios, e a lareira tornara-se indispensável em qualquer casa em Fort Sim. Subitamente, senti um cheiro que me era familiar. Bolachas de amêndoa e mel que só a avó sabia fazer. O meu pequeno-almoço estava pronto.


Desci as escadas e dirigi-me à cozinha, onde o cheio das bolachas era mais perceptível.
- Oh, bom dia querida. Dormiste bem?
- Bom dia ‘vó. Dormi… muito bem! E tu?
- Também! Preparei as bolachinhas que tanto gostas, leite, cereais, panquecas… serve-te do que quiseres!


- Oh, não era preciso isto tudo…
- Claro que é! Para a minha princesa é preciso tudo! E além disso precisas de forças para ires para a escola…
- O QUÊ?? Eu não vou para a escola hoje, avó! Nem pensar!


- Melody… hoje é Segunda-Feira… começa uma nova semana! Vais para a escola e isto não é um pedido!
- Av…
- Não há avó nem meia avó! Agora comes, vais tomar um duche e vais para a escola!
Percebi que implorar para ficar em casa era escusado. Tinha de ir para a escola, embora não estivesse disposta para tal. Mas havia algo, ou alguma pessoa, que me fazia sentia uma pequena, quase imperceptível, vontade de ir para a escola. Suponho que seja fácil de presumir quem é essa pessoa.

Capítulo 64


A casa da minha avó ficava isolada junto a um penhasco sobranceiro ao mar. Era um local solitário, mas naquele momento era o que eu mais precisava, para evitar o buliço do centro de Fort Sim, e também para evitar o meu pai. Onde quer que eu me encontrasse, no interior da casa ou no quintal, conseguia ouvir o fluxo e refluxo constantes do mar, como se fosse o respirar de uma grande criatura adormecida.
Passei grande parte dos dias seguintes a arranjar pretextos para evitar o interior da casa, ansiando pela vista do céu aberto e do imenso mar vazio, e a sensação do vento frio carregado de sal no rosto.


Não sentia saudades do meu pai. Nem sequer conseguia pensar nele. Não conseguia lembrar-me dos momentos familiares que tínhamos nem daqueles momentos mais divertidos. A saudade tinha sido abafada por este misto de repulsa e tristeza.


Mas pelo contrário, sentia uma agoniante saudade pelo Jake. Sentia falta do calor do seu corpo, da sua maneira gentil e carinhosa de falar e da sensação de calma e tranquilidade quando estou ao seu lado. Isso fez-me pensar que já há uma semana que não comparecia às aulas. Não tinha disposição para tal. Não me imaginava numa sala de aula, a aprender coisas sobre este fictício mundo perfeito. Não queria encarar a Cassandra… Dela ainda só conseguia sentir raiva e desgosto. Não obstante, também queria regressar à escola… ter algo com que me distrair, algo que me fizesse esquecer todos estes acontecimentos destes últimos meses. E além disso, sentia que tinha uma pequena missão: falar com o Dave e com a Sarah.
A avó tratava-me como se eu fosse uma rainha, por isso nem me atrevia a deixar aquela casa, nem um dia. Sentia que aquela casa era o meu lar.


Passei noites no quintal, a observar o mar com as suas suaves ondulações, enquanto bebia chá com a minha avó, e às vezes até tínhamos algumas sessões das velhas anedotas dos seus tempos. Mas uma noite, ela teve a brilhante ideia de me alertar:


- Melody, já andas a faltar demasiado tempo à escola! Tens de regressar, não podes esquecer os estudos!
- Eu sei, avó. Trata-se é de eu não ter cabeça para ir para a escola!


- Eu estou a ver a tua cabeça… por isso tens.
- Avó!
- O que foi? Tens de ir para a escola!
A insistência da minha avó quase me deixava sem palavras. Claro que por um lado queria regressar, mas ainda não tinha chegado a altura que me sentisse preparada.
Deu um pequeno gole de chá e, com uma cara comprometedora, perguntou-me:
- Então… Já arranjaste algum “amigo” lá na escola?


- De que estás a falar? – Perguntei, um pouco nervosa.
- Sabes… aqueles amigos que não nos dão apenas um beijinho na cara. Que não falam apenas de trabalhos de casa.
- Já sei onde queres chegar… E… tenho… tenho um… amigo desses.
- Ah… e… como é que é ele? É um borracho?


Soltei um pequeno riso com um misto de timidez e nervosismo. Nunca tinha falado do Jake a ninguém…
- Hum… digamos que… sim…
- Já vi que não queres falar mais sobre um assunto. – Disse a minha avó, soltando uma leve gargalhada. – Mas sabes… ser jovem é isso mesmo! Sentir o amor emergir do nosso coração! Aquela ânsia quando se vê alguém de quem se gosta. Eu tive muitos admiradores na minha escola… mas, infelizmente, nenhum deles se aproximava de mim.
- Então, porquê?


- Tinham todos muito medo do meu pai! Do teu bisavô! – Exclamou, soltando outra gargalhada.
Aquela noite estava a ser particularmente agradável. Ria-me imenso com a minha avó, e estava sempre atenta a qualquer som daquela praia. O som relaxante do mar era o que se destacava mais no meio do uivo do vento e do estalejar dos galhos quando algum pequeno animal os pisava.
- Está a ficar frio… vamos para dentro! – Pediu a avó com o seu habitual tom carinhoso.
No fundo, fiquei um pouco aliviada por aquela conversa sobre namorados ter acabado. Nunca gostei de partilhar o que sentia por outro rapaz com alguém. Quando o fazia sentia-me uma verdadeira idiota.
Ajudei a minha avó a levar a bandeja com o bule e as chávenas de chá. Enquanto ela trazia o tabuleiro com os seus biscoitos de mel e amêndoas.
Quando chegámos à cozinha, a minha avó arregalou os olhos e entreabriu a sua boca, como se tivesse esquecido de algo.
- Como é que eu me pude esquecer?! – Indagou, sussurrando.
- O que se passa?
- Vem comigo, quero dar-te uma coisa.
- O quê?
- É surpresa! Agora acompanha-me!


Capítulo 63



O sorriso resplandecente da avó quase me fazia chorar. Era um sorriso quase forçado, para conter as lágrimas que devia estar a evitar a todo o custo naquele momento. Conseguia perceber que ela, como mãe, sofre mais do que ninguém na família. Deve ser terrível perder um filho… uma parte de nós. É uma perda que eu, se fosse mãe, não aguentaria. Mas como filha, também é difícil suportá-la.
Olhei em redor, e a saleta estava perfeitamente arrumada. Nem um único grão de pó nem um único objecto fora do sítio. Nas prateleiras ainda conseguia vislumbrar uma grande colecção de bonecas de porcelana, já envelhecidas, mas com um valor sentimental incalculável para a minha avó.
Apesar de não querer tocar no assunto, tive de perguntar à minha avó uma coisa que, desde que descobri a verdade, me atormentava.
- Avó, eu não queria estar a tocar no assunto mas… Porque é que a mãe morreu durante o parto? Estava debilitada? Doente?


A avó fechou o álbum de fotografias pesadamente e pousou-o na mesa de centro. Pigarreou, e começou a falar:
- Bem… Um mês antes de a tua mãe morrer, aconteceu um acidente quase fatal. Ela foi atropelada! Ela ia fazer as suas habituais compras, que fazia mesmo questão de ir, e, não se sabe porquê, ela ia muito distraída. Mal pôs um pé na estrada, para atravessar, foi atropelada por um carro que perdeu o controlo.



- Por pouco tu não morrias dentro da sua barriga, mas a partir desse dia a tua mãe ficou muito, muito fragilizada. O médico disse-nos que a partir daquele dia, a sua gravidez ia ser de alto risco. E desde aí ela foi ficando cada vez mais fraca, aguentava cada vez menos cada tarefa de casa, até que quando chegou o dia do parto, ela não resistiu. Ela salvou-te a vida… mas com um preço.


As lágrimas começaram a brotar dos olhos verde-escuros da minha avó, levando as mãos à cara com a sua profunda tristeza.
Foi nesse momento que eu não me pude conter, e tive de desabafar com ela sobre as visões e tudo o que me atormentou antes de descobrir toda a verdade. Podia ser um choque para a minha avó, mas não podia estar mais a guardar toda a agonia que sempre retive todos aqueles meses.
- Agora tudo faz sentido… - Disse, olhando em direcções incertas.


- O que é que faz sentido, querida?
Demorei a responder. Sabia que o que tinha para dizer não era fácil, e devia escolher bem as palavras para expressar tudo o que sentia, para pôr um fim às dúvidas e ao desespero. Foi então que eu comecei a falar.
- Avó… tudo o que aconteceu com a mãe… no passado… parte desses acontecimentos eu já sabia. – Notei uma intensa expressão atónita por parte da avó.
- Não estou a perceber…
- Avó… antes de descobrir a verdade. Nestes últimos meses, eu vi coisas que nunca me tinha passado pela cabeça ver! Coisas que, no fim, se encaixaram perfeitamente! Como se eu tivesse o pressentimento de que algo de terrível tinha acontecido no passado! A mãe… quando era pequena… eu via-a sempre diante de mim, sob a forma de uma espécie de sombra ténue… a criança que está nessa foto! A mãe! Eu via-a! E… e… eu ouvia as suas gargalhadas nos meus ouvidos constantemente!
A expressão atónita da avó transformou-se numa expressão impressionada.
- Um dia, quando estava no meu quarto, eu ouvi o som da travagem de um carro, e no dia seguinte, eu ia sendo atropelada! Acabei de saber que a mãe também foi atropelada, e foi isso que causou a sua morte no parto! No corredor da minha escola, eu vi uma espécie de sombra, como a criança, mas daquela vez era um rapaz e uma rapariga de mãos dadas… A mãe e o pai conheceram-se nesse mesmo corredor! Tudo se encaixa, avó! Agora tudo faz sentido, quando, naquela altura, eu não estava a perceber nada! Não percebia porque é que tinha aquelas alucinações!
A avó interrompeu-me, pondo-se mais perto de mim e pousando as suas mãos nas minhas:
- Melody… Tu não estavas maluca! Nem estavas a alucinar! Tu nem sabes o poço de recordações em que vives! Tu não fazes ideia que, em cada sítio que tu vais, tens um monte de recordações à tua espera! Não é por acaso que as mães falam com os seus bebés quando estão dentro da barriga! O teu coração dizia-te que te lembravas de tudo o que tu vias! Aquelas sombras… aquelas, como tu dizes, “visões” não te eram estranhas! Eram reais! Tu lembras-te delas! Só que estavam um pouco distantes na tua mente! Tão distantes… que se tornavam quase imperceptíveis.


- Então… tudo o que eu via… já me lembrava? Mas… apenas não sabia que me lembrava? É confuso…
- É normal que estejas confusa… estranho seria se não estivesses. Mas lembra-te disto: Aqueles que nos amam, nunca nos deixam! Permanecem sempre no nosso coração, e nós lembramo-nos dessas pessoas onde quer que vamos, em qualquer circunstância, nem que seja no fim das nossas vidas!
A avó deu-me um carinhoso beijo na testa, e, olhando para a minha t-shirt húmida e fria, disse, indignada:
- Ora… tu sabes em que altura do ano estamos?
- Huh…
- Vamos lá… vou-te arranjar uma camisola quente, e depois vou preparar um chá! Vá… vamos lá, minha menina… à minha frente!