Capítulo 55



Sentia-me como se o mundo desabasse mesmo debaixo dos meus pés. Sentia que cada passo que dava apenas me levava a mais um buraco negro do qual nunca mais conseguia sair. Chorava pela mãe que nunca pude acariciar, nem nunca poderei. Chorava por 18 anos iludida por uma mentira, vivendo sempre na esperança de reencontrar a minha mãe.
Vagueava pelos imensos corredores do Hospital, vendo mães a acariciar os seus bebés, acompanhadas dos seus maridos, e por vezes as avós. Cada mulher com o seu bebé ao colo esboçava um sorriso resplandecente na cara, retratando uma vida promissora e com uma grande família. Eu… eu não tinha nada disso.


Entretanto, a enfermeira levara-me para me dar banho e vestir as roupinhas que, atabalhoadamente, os meus pais se tinham lembrado de trazer. O meu pai parecia que não me queria deixar ir, segurando com carinho e firmeza a minha mão pequenina. Estendeu á enfermeira o saco com as roupas que tinham comprado para mim. Depois disto, tirou do bolso o telemóvel e ficou paralisado alguns segundos, a olhar para o wallpaper que tinha. Era a mãe grávida, com um grande sorriso e as mãos a acariciar a barriga. Suspirando, digitou um número e entalou o telemóvel entre o ombro e o ouvido, limpando as lágrimas que não cessavam de cair.


- Estou? Arthur? - Disse o meu pai, num tom de voz que denotava facilmente que estivera a chorar.
- Olá, George, tudo bem? – Conseguia ouvir, no meio de alguns roídos, a voz do tio.
- Não - respondeu o meu pai, respirando fundo.
- Não?
- Arthur... a Melody, ela... - dizia o meu pai, por entre soluços - Ela... quer dizer, a nossa filha já nasceu...


- A sério? Parabéns! - Interrompeu o meu tio, aparentemente, sem se aperceber dos múltiplos soluços que o meu pai tentava a todo o custo reprimir.
- Mas... a Melody, ela... - O meu pai fez uma pausa, controlando a respiração - Ela não resistiu ao parto...
Ouviu-se um silêncio do outro lado da linha e o meu pai descaiu os braços, chorando intensamente uma vez mais. Instalou-se um silêncio quebrado apenas pelos seus soluços. Depois de alguns segundos, que a mim me pareceram horas, ouviu-se o meu tio falar:
- Não, não! Não é verdade! Ela não pode ter morrido! – Vociferou ele, a chorar também.
- Eu não te ia mentir com uma coisa destas, pois não?
- Eu quero vê-la! Eu vou já para aí!
- É escusado Arthur. Eu… apenas tive uns segundos para a ver. Nunca te iam deixar vê-la…
Novamente o silêncio envolveu a sala de espera, fazendo-se apenas ouvir os soluços do pai e os roídos da minúscula televisão da sala de espera.
- George… - O tio Arthur rompeu o silêncio. – Promete-me que vais tomar conta da tua filha… Que lhe vais dar de tudo!
- Claro que sim!
- Percebes o que eu quero dizer? Dá-lhe o que a Melody sempre lhe quis dar.
- E já comecei. Já lhe dei um nome. Chama-se Melody… como ela sempre quis.
Imaginei um sorriso do outro lado da linha e depois o meu pai desligou. A enfermeira regressara comigo ao colo, que estava toda vestida de cor-de-rosa, excepto as botinhas brancas.
- Aqui está a Melody - Disse ela não tirando os seus olhos de mim.
O meu pai pegou-me como se eu fosse de vidro e sorriu, pela primeira vez desde o desenrolar de todos aqueles acontecimentos. Deu-me um beijo na testa, e olhou uma última vez para o wallpaper do telemóvel, com uma lágrima ao canto do olho.
Passados breves instantes de pura agonia a olhar para o meu pai, que já se acalmara um pouco, aquela sala de espera, como já estava à espera, desfez-se em finas nuvens de sombras, que roubaram toda a cor, objectos e pessoas daquele lugar. Preparei-me para a habitual queda, e só abri os olhos quando senti as minhas costas embaterem em terra húmida e lamacenta.


Levantei-me, e olhei em redor. Encontrava-me sobre extensos prados verdejantes sobre os quais rasava uma fina camada de névoa, tapando-me a visão para o horizonte. Conseguia vislumbrar a Igreja dos Três Bispos, que se erguia no meio de densos bosques.
O céu encontrava-se algures entre a noite e a alvorada, e um clima gélido envolvia-me o corpo, contudo, o vento soprava fraco naquele momento. Olhei para as estrelas, que brilhavam já palidamente, e notei que ainda não tinha saído daquele mundo, mesmo sentindo que já tinha visto tudo o que necessitava de ver.


Subitamente, ouvi passos a arrastarem naqueles extensos prados, fazendo as ervas daninhas estalejar, provocando um som perturbador que me fez virar para trás num sobressalto.
Era o tio Arthur, vestido de uma forma estranhamente familiar. Não se encontrava, definitivamente, bem, pois a sua expressão transparecia dor e sofrimento, provavelmente pela notícia que tinha recebido naquela noite. Os seus passos trémulos percorriam aqueles prados verdejantes, até a uma pequena colina, no cimo da qual se conseguia ver quase Fort Sim inteira, pelas poucas dimensões que esta cidade apresentava. No cimo da colina, também se erguia um moinho gigantesco, constituído por espessas barras metálicas, que chiavam com a fraca brisa daquela alvorada.
Correu até ao extremo da colina, e vestiu um capuz de um tecido áspero e denso, e nesse momento, algo entre ânsia e angústia percorreu-me as entranhas. Era ele.
O homem encapuzado que eu vi no parque, em casa e que me empurrou para aquele poço. Foi o tio Arthur! Foi sempre ele…
Os seus soluços sofredores foram-se intensificando no meio daquela névoa, semicerrando os olhos e deixando espessas lágrimas percorrerem-lhe a face. Chorou desalmadamente, olhando para o céu nacarado como se aquele fosse o último dia da sua vida. Negava a realidade para si próprio, levando, aflitivamente, as mãos à cabeça.


Foi então que mais uma peça se encaixou no puzzle. Tal e qual como o meu sonho, o homem encapuzado, meu tio, chorava desalmadamente naqueles prados, virado para o horizonte, como se a sua vida tivesse acabado.


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