Capítulo 92

***

Caminhei na sua direcção, decidida a resolver aquele dilema de uma vez por todas. Não podia estar mais tempo zangada com a Cassie, sabia que ela estava arrependida, conseguia sentir isso. Depois de todos os bons anos que passámos seria impossível colocar isso para trás das costas. Eu tentei, mas foi tão difícil como decidir entre o que é certo e o que é fácil…
- Olá! – Cumprimentou-me, entusiasticamente.
Esbocei um pequeno sorriso, para me tentar libertar daquela tensão que sentia.
- Olá, Cassie – comecei – bem, eu… eu estive a pensar sobre o que tu disseste ontem e… - nesse momento, o meu telefone tocou – Desculpa!


- Não faz mal! Atende!
- Estou?


- Alô, amor – vi logo que era o Jake.
- Olá… olha, podes-me ligar mais daqui a um bocado?
- Eu só te queria dizer uma coisa rápida – estava muito entusiasmado.
- Diz…
- Já arranjei bilhetes para assistires ao torneio daqui a dois dias. Podes trazer quem quiseres!
- Oh, que bom Jake! Obrigada. Eu depois vejo quem é que levo comigo. Provavelmente o meu pai não vai hesitar em ir.


- OK. Olha, hoje vou chegar um pouco mais tarde à escola, estou aqui a resolver uns assuntos.
- Está bem, ‘mor. Depois eu ligo-te… até logo, beijos.
Desliguei o telefone e retomei a conversa com a Cassie.
- Era o Jake? – Perguntou – Desculpa perguntar.
- Oh, não faz mal… sim, era.
- Vocês namoram?


- Huh… sim…
- Ficam bem juntos… - Disse a Cassie, com um ligeiro sorriso na cara.
- É… hum, bem… eu estive a pensar e… Talvez, uma segunda oportunidade não fosse mal entregue!


Mal disse isto, a Cassie soltou um guincho histérico e começou a abraçar-me, repetindo:
- ‘Brigada, ‘brigada, ‘brigada, ‘brigada, ‘brigada, ‘brigada!
- De… nada!


- Ai, a sério Mel, muito, muito obrigada! Eu já não aguentava estar mais longe da minha melhor amiga! E depois tinha a Sarah, aquela…
- Esquece a Sarah! Se eu te contasse o que realmente está no seu coração tu… não acreditarias… Mas… eu perdoo-te, com uma condição.
- Diz, diz, diz, diz, diz, DIIIIIIZ! – Quase que implorou, histericamente.
- Primeiro vamos… tirar-te essa maquilhagem… depois essas pulseiras irritantes… depois mudar-te a roupa! Que tal?


- Mas eu até gosto destas pulseiras… está bem.
Nesse momento, o Dave veio ter comigo, num passo acelerado.
- Melody!
- Diz, Dave!
- Hoje o professor de Matemática não vem! E-era só para te avisar…
- Ainda bem! Obrigada, Dave!
Foi-se embora, e consegui notar a cara intrigada da Cassie.
- Desde quando é que tu falas com o Dave? – Perguntou.
- Desde que descobri a jóia de pessoa que ele é… Bem, já que não temos aula, porque não vamos para minha casa? Vou-te transformar na Cassie que realmente conheço!


Soltou um riso agudo, abraçou-me, e agradeceu-me mais vinte vezes até ficar quase sem ar nos seus pulmões.

***

Estou triste. Muito triste.
Os meus pais não aceitam que eu largue a minha carreira como modelo e actriz. Não aceitam que eu seja uma pessoa normal a viver uma vida perfeitamente em harmonia. Não! Jamais aceitarão! Eles não querem saber o que realmente quero. Jamais quererão saber o quão importante é, para mim, parar um pouco e pensar na minha vida.
Os meus pais, Biológicos, apoiar-me-iam independentemente da decisão que eu tomasse, e isso deixava-me ainda mais triste, pois sabia que nunca mais os ia ter de volta. Nunca mais…

***

- Huh… Melody… eu não estou muito certa nisto! Tens a certeza que isto é uma boa ideia?


- Sim, tenho! Vamos começar…
A Cassie estava extremamente nervosa. Ela não fazia a menor ideia do que eu lhe ia fazer no visual… na verdade, nem mesmo eu. A minha avó ensinou-me vários truques de cabeleireira, mas eu não tinha posto nenhum desses truques em prática.
- Vou lavar-te esse cabelo… esse gel põe-to muito pouco volumoso!
- Mas eu gosto!
- Huh… Cassie… queres que te perdoe ou não? – Sentia-me “com o poder” por a Cassie estar nas minhas mãos. O meu ténue lado malévolo fez-me repensar sobre a tentativa de ruína do seu visual, mas ponderei, e vi que aquela era a minha oportunidade de voltar a ver a Cassie que realmente conhecia.


Capítulo 91

A noite estava muito fria e lá fora uma chuva miudinha ameaçava tornar-se numa tempestade violenta a qualquer momento. Vi-me obrigada a sair da cama para ir buscar um par de meias quentes e dois cobertores grossos e fofinhos ao roupeiro. Mas por mais que me tentasse aquecer, continuava a sentir uns arrepios desconfortáveis e assustadores pelo corpo todo. Cheguei a ter vontade de ir dormir na cama do meu pai, como tantas vezes fazia quando era pequena.
Adormeci. Perdi a noção das horas, até que ouvi um grito agudo e desesperado. O meu coração deu um pulo violento e acordei, olhando para o relógio completamente em pânico.


Eram 3h30 da manhã. A chuva batia com violência nos vidros, tal como eu previra. Teria sido tudo um pesadelo ou aquele grito fora real? Pairava no ar um silêncio constrangedor e aparentemente estava tudo normal. Conseguia ouvir o meu pai roncar no quarto ao lado, e, qualquer das maneiras, ele nunca poderia ter gritado tão agudamente. Voltei a deitar-me na cama, ainda assustada. De repente, o meu quarto tornara-se diferente. Os peluches que tinha aglomerados nas prateleiras, pareciam mover-se. Já não pareciam animais amorosos, mas sim almas maquiavélicas de outro mundo. Viam-se sombras por todo o lado, e o copo com água que tinha na mesa-de-cabeceira parecia tremelicar de um modo sobrenatural.


O pânico deixou-me sem respiração e, antes que soltasse um berro que acordasse a rua inteira, enfiei a cabeça nos lençóis. Tentei retirar melindrosamente aquelas imagens da minha mente, mas não só não conseguia como elas ainda pareciam tornar-se mais nítidas e reais. Felizmente, não demorei muito tempo a adormecer. Mas estava longe de ser uma noite calma.

"Melody, Melody".


Era uma voz doce, e ao mesmo tempo fria. Não me era completamente desconhecida, mas não sabia de onde vinha.

"Melody".


Mudei de posição na cama, enrosquei-me ainda melhor nos cobertores. As vozes não cessavam, mas adquiriam contornos diferentes á medida que o tempo passava. Umas vezes eram suplicantes, outras assustadoras, outras ainda alegres. Abri os olhos repentinamente. Fiquei completamente imóvel, revirando os olhos em redor a tentar perceber o que se passava. Respirava com dificuldade, e nem sequer conseguia mexer-me na cama, tal era o medo que se apoderara de mim. As vozes tinham acabado. Nada parecia anormal naquele quarto, excepto eu, que, qual peixe fora de água, fazia um esforço enorme para respirar com normalidade.


Decidi então levantar-me e fui directa à casa de banho lavar a cara com chapadas de água fria, de modo a refrescá-la já que, ao contrário do resto do corpo, parecia um forno a 250 graus. Depois fui à cozinha preparar o pequeno-almoço. Enquanto as torradas estavam na torradeira e o leite aquecia, fui à janela inspirar ar fresco. O sol nascia por detrás das colinas de Fort Sim. Era ainda muito pálido, no meio de tantas nuvens cinzentas que denotavam com clareza a tempestade que assolara á noite. Respirei fundo e convenci-me a mim mesma que, uma noite destas, nunca mais se repetia.
As minhas mãos ainda estavam trémulas, e ainda me escorriam suores frios pela testa, como se fossem riachos numa torrente incansável. Não demorou muito tempo até o meu pai vir à cozinha para ligar o esquentador para tomar duche. E qual não foi o seu espanto:
- Melody, já estás aqui?! – Perguntou, atónito.
- Não, pai, estou no meu quarto a dormir… - Respondi, ironicamente.


- Já vi que não estás para conversas…
- Estou a brincar contigo! Passei um pouco mal a noite, sabes...
- Então? O que se passou? – Veio ter junto de mim, com uma cara preocupada.


- Não me apetece falar sobre isso… o pequeno-almoço está quase pronto! Despacha-te no duche!
- OK, vou tentar despachar-me!
Vi-me obrigada a forçar um sorriso e a fingir que estava tudo bem, até porque me queria capacitar de que realmente estava tudo bem.
Durante o pequeno-almoço não disse nada ao pai, mal lhe dirigi a palavra. Queria tomar o pequeno-almoço sem que ele me perguntasse:
- Estás estranhas, hoje… o que se passa? – Pelos vistos tinha sido tarde de mais para esperar que ele não se preocupasse comigo.
- Nada… não se passa nada. Sabe como é… Sexta-Feira, fim da semana, ando sempre muito cansada.
- Vê lá… se não quiseres ir à escola eu justifico-te a falta…
- Não é preciso, pai. Obrigada!
Levantei-me, peguei na minha mala, dei um beijo ao meu pai e fui para a escola, tentando fugir àquela conversa que me martirizava a cabeça.
Não sabia a razão porque tinha tido aquele sonho. Estava confusa, e doía-me bastante a cabeça. Estava convicta de que todas aquelas sequências de visões e sonhos tinham acabado. Pensava que finalmente poderia viver comodamente. Mas será que estava enganada?


Não quis pensar mais no assunto assim que cheguei à escola. Estava lá com outro objectivo, que se calhar já devia ter atingido há muito mais tempo.


***

Estava no meu cacifo, a arrumar alguns livros para aliviar aquele tortuoso peso da minha mala. Olhei de relance para as fotografias que tinha colado na parte de dentro da porta do cacifo. Nelas estávamos eu e a Melody. Lembrava-me perfeitamente que aquelas fotografias eram do nono ano, e que estávamos mais unidas do que nunca.
Fechei o cacifo, e qual não foi o meu espanto, quando vi a Melody a encaminhar-se na minha direcção, fixando-me, mais decidida do que nunca. Foi aí que eu senti uma nesga de esperança a desabrochar do meu coração.


Capítulo 90

- Dave, eu… eu não sei o que dizer… lamento muito…
- Eu admiro-a muito, sabes, Melody? Sempre que vinha ao meu quarto, com marcas na cara e no corpo, conseguia manter o seu lindo sorriso, para me mostrar que estava tudo bem e que tudo aquilo não passava de um pesadelo! Foi sempre uma mulher sonhadora… eu e ela, muitas vezes, íamos para a praia e fechávamos os olhos, sonhando com uma vida perfeita e harmoniosa, só eu e ela… filho e mãe…
- Mas… a tua mãe suicidou-se, porquê? Ela tinha-te a ti!
- Mas não chegava, Melody! Não chegava… ela sempre amou o meu pai, mesmo quando a maltratava, e por isso, ela encarava aquilo como um amor impossível. Eu tinha doze anos. Foi numa noite, em que os meus pais tinham discutido de tal maneira, que o meu pai mandou tudo a baixo, agrediu a minha mãe de tal forma, que eu tive que sair… tive que sair do quarto e ver o que se estava a passar, na esperança de que tudo parasse, e que eu pudesse mudar os sentimentos, se é que eles existissem, do meu pai. Mas foi ainda pior… - Suspirou, soluçando. – Quando o meu pai viu que eu tinha ouvido a discussão, saiu do quarto e começou a gritar comigo.


- Ele depois bateu-te…
- Ele nunca me tinha batido, nunca! Por muito estranho que pareça! Mas nessa altura foi diferente! – As lágrimas brotavam com uma intensidade distinta. – Chicoteou-me com o cinto dele… bateu-me… eu ouvia os gritos da minha mãe, implorando que ele parasse, mas o meu pai não lhe dava ouvidos… não queria saber… - Olhou para o chão, e fez uma longa pausa. – Até que, dada altura, ouvi um barulho de um tiro. Eu e o meu pai corremos até ao quarto, e estava lá ela… a jazer no chão, com o revólver do meu pai na mão, a esvair-se em sangue. Foi nessa altura que eu pude ver a aflição do meu pai… não por arrependimento, não por tristeza da sua mulher, a mãe do seu filho, ter morrido… mas sim por não saber o que fazer ao corpo, para que os vizinhos não o culpassem nem chamassem a polícia.


- Não acredito… - Disse, olhando-o nos olhos.
- Eu fechei-me no quarto, sentei-me no chão, e fechei os olhos, tal como a minha mãe me tinha dito para fazer, sempre que me sentisse triste, abandonado… sozinho. Fechei os olhos, e imaginei a minha mãe e eu numa praia, a brincar juntos, e a rirmo-nos muito. Estávamos felizes…


As suas palavras sofredoras apunhalavam-me o coração, deixando-me sem forças nem com coragem para dizer o que quer que fosse. Sabia que qualquer consolação não iria resultar…
- Então mas… o teu pai… como está ele agora?
- Foi para o estrangeiro, para que mais ninguém soubesse dele. Agora estou a viver com a minha tia… a irmã da minha mãe, e às vezes até podemos partilhar o que sentimos. Mas não é a mesma coisa…
- Eu sei o que isso é…
- Não, não sabes! Não sabes o que é perder uma mãe! Eu sinto tanta falta dela! – Exclamou, soluçando.


O Dave estava errado. Eu sabia muito bem o que era perder um familiar próximo. Não estava muito disposta a falar sobre o assunto, mas depois de tudo o que ouvi da sua vida, achava que o mínimo que podia fazer era contar que a minha mãe também tinha morrido.
- Estás enganado! Eu sei muito bem o que isso é! A minha mãe também morreu!
Ao dizer aquelas palavras tão difíceis de dizer, o Dave olhou para mim com os seus olhos ternos, dando a entender que esperava uma explicação melhor.
- Morreu para me salvar… quando eu nasci. Morreu durante o parto.
- Lamento imenso!
- Mas o pior de tudo, é que eu só soube da sua morte há um mês…
- O quê? Antes não sabias? Como é que é possível?
- O meu pai escondeu a morte da minha mãe… a pedido dela… Mas é uma história muito confusa que eu agora não estou com disposição para falar…


- Claro, claro. Eu compreendo.
- Dave… eu lamento imenso o que aconteceu com a tua mãe, mas tu tens de saber que tens de seguir com a tua vida! Tens de seguir em frente, por muito difícil que seja!
- Não consigo!
- Sê forte! Eu sei que consegues! Lá fora espera-te um futuro promissor! Tu tens uma infinidade de capacidades, és um óptimo aluno, inteligente! Agarra o teu futuro, Dave, e não fiques a lamentar o passado, que não passa disso… do passado!
- É fácil falar, mas fazê-lo?
- Eu estou a fazê-lo, também! Tive de esquecer o meu passado, tive que prosseguir com a minha vida! Claro que ainda estou devastada com tudo o que aconteceu, mas sei que mais tarde ou mais cedo irão surgir oportunidades que me irão levar ao futuro… ao meu futuro! Por isso é que não posso andar agarrada ao passado tanto tempo!
- Isso és tu… mas eu. Eu não consigo, Melody! Não consigo! Jamais conseguirei esquecer tudo o que se passou!
- Dave… a tua mãe disse-te para fechares os olhos nos momentos mais tristes e solitários da tua vida, não te disse?
- Sim…
- Então agora, eu peço-te que os abras, e que vejas o que está à tua volta! Espera-te um mundo cheio de oportunidades à espera de serem agarradas! Lança-te à vida, Dave!


Limpou as lágrimas e sorriu-me, pela primeira vez. O seu sorriso, embora quase imperceptível, transpareceu uma nesga de esperança na sua vida, e eu sentia-me bastante orgulhosa por isso.
Cheguei a casa, um pouco depois da hora prevista. O dia preparava-se para escurecer, e assim que cheguei a casa, o meu pai veio ter comigo preocupado.
- Onde andaste?
- Estive na escola a estudar e perdi a noção das horas…
- Porque não vieste para casa estudar?
- Bem, huh… Havia lá livros que eu ainda não tenho, por isso preferi estudar lá.
- Ah… está bem… Bem, o jantar está quase pronto!
- Queres ajuda? – Perguntei, pousando a mala no sofá.
- Não é preciso! Eu já telefonei ao entregador de Pizzas, agora o que podes fazer é esperar! – Exclamou o pai, rindo-se, divertidamente.


Capítulo 89

A sua cara transparecia dificuldade e tensão, para me dizer tudo sobre o seu passado. Quase que conseguia ouvir o pulsar anormalmente acelerado do seu coração.
- Nunca falei sobre isto com ninguém… é difícil… - Disse o Dave, o seu peito a arfar.
- Tem calma, Dave! Respira fundo! – Exclamei, tentando sorrir para romper aquele momento de tensão.
Suspirou, olhando para vários pontos do tecto.
- Se não quiseres falar, não precisas…
- Não… Já não perco nada em falar. E… é melhor assim, não é?


- Sim… é. – Concordei.
Sentamo-nos os dois nos sofás à entrada da Biblioteca. Estava convicta de que ninguém iria entrar lá, pois estavam todos, ora em aulas, ora nas actividades extracurriculares.
Quando inspirou para falar, o meu coração começou a bater aceleradamente, como se estivesse diante de uma situação muito pior às milhentas situações que já tinha passado. Se calhar, estava mesmo à frente de um problema ainda maior do que qualquer um.

* * *

Enquanto passeava pelo pátio da escola, pensava na conversa com a Melody. O que mais me magoava é que ela fora verdadeira em tudo o que falara. Agora que me punha no seu lugar, conseguia ver como era duro ser rejeitada daquela maneira, e compreendia a sua posição melhor do que nunca. Ainda assim, tinha esperanças que tudo se resolvesse, embora tivesse que admitir que eu não seria, muito provavelmente, perdoada...
Aquela ansiedade começava a ser sufocante. Sentia que tinha de fazer algo mais do que simplesmente esperar que tudo ficasse bem. Estava a sentir-me extremamente egoísta, tinha uma vontade imensa de regressar ao passado e evitar todos os meus erros. Mas o facto de saber que isso era completamente impossível punha-me num estado de extrema ansiedade. Será que eu mereço que ela não me perdoe? O arrependimento não deverá contar?
Quanto mais dúvidas me assolavam a cabeça, mais certezas eu tinha que não ia desistir de recuperar a minha amiga. Queria reviver aqueles sentimentos recíprocos, típicos de uma grande amizade. Queria recuperar o tempo perdido, e, no que dependesse de mim, isso ia acontecer.

* * *

- Quando os meus pais se casaram, a minha mãe já tinha o pressentimento de que aquele casamento iria correr da pior forma. Mas a sua força de vontade e optimismo superaram todos os receios. Ela queria construir a sua própria família, ter filhos e viver uma vida harmoniosa e perfeita, ou quase perfeita. Mas no que dependesse do meu pai, o casamento estava longe de ser perfeito e harmonioso. – Os seus olhos brilhavam de tal maneira que a imagem de rapaz tímido e reservado que era típica do Dave, quase se dissipava.
- O teu pai maltratava a tua mãe… não era?


Assentiu, limpando ligeiras lágrimas com a mão.
- Quase todos os dias eu acordava a meio da noite, com os gritos e choros da minha mãe. Ela vinha ao meu quarto, dizendo que estava tudo bem, com marcas na cara, sangue na sua camisola.
- Mas… porque é que o teu pai fazia isso à tua mãe? O que o levava a fazer tal acto tão cruel?
- Não sei! Nem a minha mãe sabia. Ele chegava a casa muito tarde, bêbedo, e naquele estado, a sua ferocidade proeminente era ainda mais intensa. Ele levava a minha mãe ao desespero e à persuasão, mas nada disso importava para o meu pai. Tudo o que ele queria era ter relações sexuais com a minha mãe, caso contrário, se a minha mãe se recusasse, recorria ao espancamento quase mortal.


- Que horror… - Sussurrei.
- Que horror? Tu não sabes, Melody. Isto é apenas uma amostra do que ele fazia! – A sua voz estava extremamente trémula. – Eu tapava os ouvidos quando ouvia o primeiro grito da minha mãe. Sabia sempre que aquele primeiro grito se iria prolongar pela noite dentro, chegando a não me deixar dormir. Tudo isto sob o efeito do álcool do meu pai, e às vezes por pura insanidade! – Começou a soluçar timidamente, enquanto limpava as demais lágrimas que brotavam dos seus olhos.


- Dave… - Pousei a minha mão na dele. – O que aconteceu depois? Quero dizer… agora… o teu pai continua a maltratar a tua mãe?
- N-não… - Negou, soluçando ainda mais.
Num ápice, pensei que tudo tinha ficado bem para o lado da sua mãe e do Dave, mas os soluços tão intensos e imparáveis levaram-me a pensar rapidamente o contrário.
- O meu pai já não bate mais na minha mãe… - Continuou. – Nem sequer lhe toca… eles estão separados.
- Mas isso é bom não é? – Perguntei, inutilmente, sem saber o que vinha a seguir.
- Eles tiveram de se separar à força.
- Á força? Não estou a perceber…
Olhou para mim, desistindo, e deixando cair todas as lágrimas que já há muito tempo que estavam guardadas.
Aproximei-me dele, envolvendo o meu braço no seu ombro, dando-lhe apoio.
- Pronto… pronto… não chores… o que se passou, Dave? – Perguntei, contendo as minhas lágrimas.
- Foi tudo culpa dele… foi tudo culpa dele! Monstro! Monstro!


- Dave! O que se passou a seguir! O que aconteceu?! Diz-me!
Afastou-se ligeiramente para olhar para mim, coisa que eu não queria que acontecesse, pois as lágrimas também já me brotavam dos olhos.
- A minha mãe… a minha mãe. - Os soluços ofuscavam a sua voz. – A minha mãe… suicidou-se…!
Toda a minha aflição e angústia foi eclipsada, naquele momento, pelo desespero e tristeza. Não tinha palavras para descrever como lamentava o sucedido, tudo o que queria era dar apoio ao pobre Dave, e dar-lhe forças.


Capítulo 88

Fui para a Biblioteca, ainda a pensar na minha conversa com a Cassie. A sua honestidade e inocência fizeram-me pensar sobre o assunto durante horas a fio. Quase não me conseguia concentrar no que tinha realmente para fazer: Estudar.
Consegui ver o Dave a estudar também, e na mesa à sua frente a nova aluna da escola. Nessa altura consegui notar ainda mais as semelhanças entre eles.



Não apenas por serem envergonhados e fecharem-se nos seus próprios mundos, mas também a aparência e o facto de estarem sempre agarrados aos livros. Por momentos pensei que eram irmãos, mas pelo que eu sei, o Dave é filho único. Fiquei a olhar para ambos, a imaginar se uma grande amizade se desencadeasse entre eles. Porque não? Assim o Dave não se sentiria tão excluído socialmente? Não se sentiria tão sozinho e tão reservado?
Não conseguindo permanecer sentada nem mais um minuto, com um livro de História mesmo à minha frente sem o conseguir ler, levantei-me e fui ter com o Dave, que a princípio pareceu fingir não me ver.
- Olá Dave! – Cumprimentei.
- Olá… - Respondeu, pela primeira vez, sem gaguejar.
- Então… estás a estudar o quê?
- História…
- Ah… o mesmo que eu. Mas fiz uma pausa para vir aqui falar contigo… não te importas pois não?


- Não, não!
Olhei para a nova aluna, que olhava para nós de soslaio.
- Então, já conheces a nova aluna?
- Quem? A Lilly?
- Ah… então já a conheces… - Disse, envergonhada. - Ao menos já sabes o nome dela quando lhe fores falar, não é?
- Falar?
- Sim! Ela parece uma boa rapariga, não achas?
- Huh… não sei, não a conheço. – Disse, disfarçando o seu nervosismo lendo algumas frases do livro em voz alta.
- Dave, eu vou directa ao assunto, que já deves ter percebido qual é… - Ao dizer aquilo, o Dave levantou-se bruscamente da cadeira e foi arrumar os seus livros.
- Eu já disse que não tenho nada para dizer…
- Isso é mentira, Dave! Tu sabes que é!


- Não! É a verdade! Eu não tenho nada para “desabafar”. Tive os meus altos e baixos no passado… mas são meus!
- Aí está!
- O quê?
- São só teus! Tu reservas-te demais, Dave! Por um único dia não podes desabafar com alguém?
Suspirou, continuando a arrumar os seus livros.
- Eu já desabafei com uma pessoa! E os resultados não foram muito satisfatórios, porque não tardou… não tardou a que toda a escola soubesse!


- Mas eu estou com boas intenções Dave! Acredita! Eu não quero espalhar por toda a escola! Apenas quero saber porque é que és tão tímido! Eu sei o que se passou no teu passado! Apenas quero que me expliques o que se passou realmente. Estou confusa!
- É impossível saberes… ninguém com que tu falas e andas sabe qualquer coisa sobre mim!
- Mas eu não soube através de terceiros! Eu soube… tu nunca irás acreditar!
- O quê? Retornaste ao passado? Todos com conhecimentos cientificamente razoáveis estão cientes que vai contra as Leis da Física voltar atrás no tempo!
- Podes crer que não é… mas não estou a por isso em questão agora Dave! – Comecei a sentir um nervoso miudinho que já quase não me lembrava de como era sentir borboletas na barriga. – Eu não tenciono espalhar o que supostamente me vais contar por toda a escola! Eu sou tua amiga, Dave! Sabes disso certo?
Assentiu tremulamente, enquanto olhava em redor com os olhos a brilhar.
- Por favor, Dave! Conta comigo!

* * *


- OK, pessoal… chega por hoje! Amanhã treinamos mais! – Vociferei, para que todos ouvissem, mas o entusiasmo e a euforia pelo dia do torneio inter-cidades se aproximar cada vez mais rápido abafava a minha voz.


- Jake! Só treinámos uma hora! O torneiro é daqui a 4 dias! Temos que nos preparar! – Exclamou o Michael.
- Nós já estamos preparados, malta! Vamos ganhar numa boa!
- Não me parece, Jake! Estive a ver na Internet e a equipa adversária é muito poderosa! É tricampeã!


- E daí? Nós também o vamos ser quando ganharmos este campeonato!

* * *

- Muito bem… - Disse o Dave, suspirando tremulamente. – É melhor sentares-te! É… uma longa história!
O meu coração pulsava anormalmente, enquanto esperava que o Dave ganhasse coragem para finalmente desabafar todas as suas mágoas e más recordações do seu passado.
Mal sabia eu do quanto difícil ia ser, ouvir aquelas palavras, projectadas de uma forma tão sofredora.