Capítulo 103

Passei a maior parte dos dias seguintes a resumir o meu dia-a-dia a apenas escola e casa. Apesar dos convites que eu recebia do Jake e da Cassie, não me dava vontade de os aceitar. Passava a maior parte do tempo em casa, ora a fazer trabalhos de casa, ora a estudar, ou ainda, a ler e reler a página do diário do meu pai. Não conseguia controlar a nostalgia que sentia dentro de mim sempre que lia aquela carta, mas ao mesmo tempo ficava satisfeita por a ler. Aquela era a razão pela qual eu tinha perdoado o pai, era a razão por que ele escondeu a morte da mãe.


Mas o que não me punha nada satisfeita, era o facto de o tio Arthur ainda não ter tido conhecimento de absolutamente nada. Ele não sabia a razão pela qual o pai tinha escondido a morte da mãe todos aqueles anos, o que desencadeou um mau relacionamento entre eles, dividindo a nossa família em dois: a da parte da minha mãe e a da parte do meu pai. E isso transtornava-me profundamente, pois era naquela altura que a nossa família tinha de estar mais unida do que nunca.


Levantei-me bruscamente da cama, em consequência de uma súbita e brilhante ideia que tivera naquele instante. Arranquei uma folha de um dos meus cadernos da escola, peguei numa esferográfica e comecei a escrever.
Desci as escadas, satisfeita, e deparei-me com o meu pai no sofá:
- Pai, tens algum envelope?
- Uh, o quê? – A sua voz tremula denotava que estava a dormir.
- Um e-n-v-e-l-o-p-e! – Repeti, dando ênfase a todas as letras.
- Ah, está um molho na gaveta da cozinha…
- Obrigada!
O pai continuou a dormir, enquanto eu fui á cozinha e retirei de lá um envelope. Depois, voltei para o meu quarto.


Assim que acabei de escrever a carta, reli-a umas dez vezes, anexei a página do diário do meu pai e depois pu-la no envelope e preparei-me para ir aos correios. Sabia que tinha de fazer aquilo. Não podia deixar o meu tio julgar o meu pai por um acto que ele não cometera. Tinha que lhe dar a descobrir, da mesma maneira que eu mesma descobrira, que o que o meu pai fizera tinha uma lógica, uma razão. Eles não se davam bem, e eu não podia permitir que a família que ainda me restava se desse mal. Tinha receio que o meu pai desse pela falta da página do diário, mas tinha mais medo que o meu tio continuasse sem saber a verdade. Por isso, enchi-me de coragem e sai de casa, decidida a esclarecer todo aquele mal entendido. No fundo, eu acreditava que tudo se ia recompor e foi com esta esperança que empurrei a pesada porta dos correios, entrei e, segundo a orientação de uma senhora velhinha, depositei a carta no marco vermelho. Agora só me restava esperar que, no dia seguinte, o meu tio a lesse. E depois… depois, íamos finalmente dar-nos todos bem, por o passado atrás das costas e ser um protótipo de uma família feliz.

* * *



Acordei de manhã cedo, impulsionado pela dificuldade em dormir, depois de um pesadelo que tive durante a noite. Levantei-me e dirigi-me ao Altar da igreja, onde raios dourados penetravam pelas janelas com os desenhos góticos, já gastos, esculpidos nos vidros, o que conseguia dar uma suave tonalidade a esses raios de sol que insidiam sobre elas.
Desci lentamente a curta escadaria do Altar. Caminhei pelo santuário atapetado, olhando em redor, para os bancos, para as velas apagadas e para as estátuas que repousavam em frente às janelas. De facto, olhava mais para uma, observando os seus detalhes que se mostraram resistentes com o passar dos anos. Aproximei-me da estátua da Melody, não conseguindo tirar os meus olhos dela.


Conseguia lembrar-me, quando eu próprio a esculpi, atendendo a todos os seus pormenores, principalmente na cara. A estátua era elegante, com um grande vestido e agarrava os seus longos cabelos. Tal como ela. Quase conseguia imaginá-la a mexer-se, os seus olhos a ganharem a cor verde-água, e a olhar para mim, dizendo que estava tudo bem e que ia voltar dali a uns dias, viva. Conseguia imaginá-la a movimentar-se e a descer daquele pedestal e a vir até mim.



Mas rapidamente acordei dos meus pensamentos quando alguém bateu à porta.
- Já disse que esta igreja está… - quando abri a porta vi que era o carteiro – encerrada… Desculpe, posso ajudá-lo?
O Carteiro, com uma cara aterrorizada, talvez por ainda não estar penteado, tirou da sua mala uma carta, dizendo, tremulamente:
- Tem correio, senhor!
- Correio? Deve ser engano, eu nunca recebo correio…
- Eu tenho a certeza que é esta a morada…
Peguei na carta e olhei para a morada. Era mesmo aquela.
- Obrigado…
Fechei a espessa porta de madeira e dirigi-me ao escritório. Por que haveria alguém de me enviar uma carta? Nunca tinha recebido correspondência até então, pelo que me levou a abri-la ainda com mais curiosidade.


Capítulo 102

***

Cheguei a casa, exausto daquele dia de trabalho árduo. Já não me lembrava de ter um dia assim tão fatigante. Pendurei o casaco no cabide do hall de entrada e dirigi-me à sala, na esperança de ver a Melody, que habitualmente se deitava no sofá a ver televisão depois da escola, mas não estava lá. Talvez estivesse a fazer algum trabalho na escola ou a estudar na biblioteca, ou então, simplesmente, a conviver com os seus amigos. Não a queria pressionar, muito pelo contrário, queria que ela se abstraísse de todos os acontecimentos ocorridos naqueles últimos meses, embora eu admitisse que fosse uma tarefa muito complicada. Não era de um momento para o outro que a Melody ia esquecer tudo o que se tinha passado com a sua vida.


Subi as escadas e encaminhei-me para o meu quarto. Pousei a pasta em cima da cama e sentei-me na mesma. Tentei, numa tentativa infrutífera, massajar os meus ombros, para tentar libertar a tensão que se fazia sentir sobre estes, mas não valia a pena. Só com dez horas seguidas de sono é que me conseguia descontrair.
Olhei para a mesa-de-cabeceira, onde repousava uma moldura com uma fotografia de mim e da minha esposa, no dia do nosso casamento. Ainda conseguia vislumbrar, na minha cabeça, a esbelta imagem dela a entrar na igreja, com aquele vestido a rastejar pelo chão, o seu ramo de flores que empunhava e a sua cara de quem estava ligeiramente nervosa. Conseguia quase sentir o cheiro do seu perfume com aroma a rosas, que deixava um serpenteante rasto tentador.
Foi nesse momento que senti um enorme vazio no meu coração, um vazio mais intenso que me punha ainda mais frágil. Um vazio que nem a minha filha conseguia preencher.

***

Cheguei a casa com uma pontada de satisfação que me enchia o peito de felicidade. Aquela tarde que tinha passado com o Jake e a Cassie fez-me pensar que, apesar dos altos e baixos que tinha passado naquela temporada, tinha sempre o apoio incondicional deles, e isso é que me dava uma satisfação tremenda.


Olhei para o cabide e vi o casaco do pai, pelo que eu pensei logo que ele já tinha chegado a casa. Pousei as chaves no cinzeiro do aparador do hall de entrada e olhei para o calendário que estava em frente ao espelho, que marcava o dia 29 de Novembro de 2008. Por momentos recordei-me de quando o vi a marcar a data de 18 de Dezembro de 1990, quando voltei atrás no tempo, e assisti à morte da minha mãe, nesse dia. Quando a vi a dar a sua vida por mim.


Subi as escadas e dirigi-me ao quarto do pai. Estava silêncio no seu interior. A porta encontrava-se entreaberta deixando passar uma faixa de luz dourada proveniente do candeeiro da sua mesa-de-cabeceira. Olhei pela fresta que me permitia ver o interior do quarto, e vi o pai sentado na cama, com uma moldura nas mãos. Olhava para a moldura com um olhar terno e fragilizado. Acariciava a fotografia que se encontrava emoldurada, que eu não conseguia ver qual. Foi então que entrei no quarto, fazendo chiar a porta, pelo que o pai olhou rapidamente para esta.
- Ah, Melody, nem te ouvi chegar… - disse, surpreendido, pousando a moldura na sua mesa-de-cabeceira e limpando a cara, pelo que eu presumi que fosse uma lágrima.


- Foi no vosso casamento? – Inquiri, apontando para a moldura.
- Sim… - respondeu o pai, num suspiro trémulo.
- Estava tão linda… a mãe.
- Pois estava… linda! Foi o dia mais feliz da minha vida… assim como o do teu nascimento…
Suspirei, recordando-me do que se tinha realmente passado nesse dia.
- Não foi propriamente um dia feliz – disse, suspirando – pois não?
- Foi triste por a tua mãe morrer, mas foi feliz ao mesmo tempo, por saber que te tinha nos meus braços, para o resto da vida! – Dizendo aquelas palavras carinhosas, deu-me uma festa na cara.


- Ela era uma grande mulher – afirmei.
- Uma heroína… Sabes, às vezes ponho-me a recordar o dia em que a conheci, na Escola. Chocámos um contra o outro, no corredor, ambos apressados para ir para as aulas. Lembro-me que na aula seguinte eu não conseguia pensar em mais nada senão ela. Mas não tinha a certeza se ela gostava de mim… mas depois pude saber, quando a convidei para sair.
- No restaurante ‘O Bistro’…
- Sim… nunca mais me esqueço do empregado que não parava de nos recomendar os pratos mais caros do restaurante, embora nós já tivéssemos pedido – soltou uma gargalhada baixinha, enquanto olhava de novo para a fotografia. – Eu nunca me vou esquecer dela, Melody… nunca.


- Nem eu, pai.
Pousei a minha cabeça no seu ombro, deixando cair algumas lágrimas para a sua camisa. Não tirava os olhos da fotografia, nem a mão da medalha do colar.


Capítulo 101

Chegámos à escola e dirigimo-nos ao Bar. Quando lá entrámos vimos logo a Cassie a agitar os braços muito depressa, para nos irmos sentar ao pé dela. Sentámo-nos, com copos de sumo na mão, que tínhamos comprado.
O bar estava atafulhado de gente a comer bolos e beber refrigerantes, a conviverem ou simplesmente sentados nos puffs a assistir ao enfadonho programa que a pequena televisão do bar, ainda de raios catódicos, transmitia. Ao fundo do bar, meio escondidos pela multidão, encontravam-se o Dave e a Lilly. Em cima da mesa tinham dois copos de leite com chocolate, que sorviam delicadamente. A julgar pelos livros que tinham espalhado, deveriam estar a rever a matéria, embora eu desconfiasse seriamente que o estudo não estava a ser levado muito a sério.
- Vou contar uma anedota – anunciou o Jake, com um sorriso malicioso.


- Força – disse a Cassie, ingerindo o seu sumo de maçã.
- Um galo sugere ao outro que vão ao supermercado nessa tarde. E um dos galos, admirado, pergunta “para que queres tu ir ao supermercado?” e o outro responde: “para ir ver as galinhas despidas, como é óbvio!”
A Cassie desmanchou-se em gargalhadinhas histéricas, e eu enveredei pelo mesmo caminho. De repente, o Jake tocou-me ao de leve no ombro e disse, apontando para a porta do bar:
- Olha para trás, Mel!


Olhei para onde o Jake indicara e quase desmaiava de surpresa. Era a Sarah que se encontrava à porta do bar! Vestia umas calças pretas e uma túnica cor-de-rosa que marcava a sua cintura fina. Apesar da roupa esbelta que usava, havia algo nela muito diferente. Já não ostentava a sua habitual expressão segura e convencida. Na realidade, deixava transparecer alguma insegurança e inquietação. Parecia uma pessoa completamente nova.


- Sabes, Melody… o meu avô tem uma quinta, e na sua casa ele colecciona cabeças de animais embalsamadas! Se calhar ele iria querer ter lá a cabeça da Sarah! – Ao dizer aquelas palavras horripilantes, a Cassie soltou uma gargalhada histérica.
- A Sarah nem é um animal! – Corrigiu o Jake.
- Para mim é… uma cobra! – Soltou outro riso histérico.


- Bem, eu vou lá falar com ela – disse, levantando-me.
- Estás maluca? – Indagou o Jake.
- Não! Acho que não faz mal nenhum ir lá falar com ela, portanto, com licença.
- Tem cuidado Melody! – Exclamou a Cassie – Ela pode morder-te e o seu veneno pode entranhar-se nas tuas veias para sempre! Depois passam a ser duas cobras venenosas!
Não respondi àquela observação absurda e virei costas, encaminhando-me para a mesa onde a Sarah se tinha sentado.
- Sarah?
Ao ouvir a minha voz, ergueu a sua cabeça, e a sua expressão lunática transformou-se numa de alívio, juntamente com um sorriso simpático, pelo que eu fiquei extremamente impressionada, pois nunca tinha visto tal sorriso na sua cara.


- Olá, Melody!
Sentei-me junto a ela. Quase que podia imaginar, atrás de mim, a Cassie com os olhos muito esbugalhados a observar-nos, com uns binóculos que trás sempre na sua mala. Mas nem me dei ao trabalho de me ralar com isso, e concentrei-me na minha conversa com a Sarah.
- Então… como estás? – Perguntei, com delicadeza.
- Bem… estou bem…
- Faltaste à escola por muito tempo…
- O que querias que eu fizesse? Se eu aparecesse… bem, tu sabes o que me aconteceu.
- Sim, sei. E lamento imenso. Não sabia que aquela jornalista ainda estava a escutar a nossa conversa.


- Deixa lá… não te preocupes. Se calhar até foi o melhor que me pôde ter acontecido.
- A sério?
- Sim… Não podia mentir às pessoas por muito mais tempo – notei que a sua voz se tornara trémula.
- Sarah, porque escondeste aquilo durante tanto tempo? Porque é que achavas que essa notícia te poderia destruir a carreira?
- Já destruiu, Melody.
- Se tu tivesses contado a verdade às pessoas desde o princípio já não ta destruiria! Além disso, há tantas modelos famosas que são órfãs, ou têm pais divorciados ou até vivem em quintas! E achas que alguma delas desistiu?
Permaneceu em silêncio, olhando para baixo fixa e incansavelmente.
- Olha… diz-me uma coisa… como é que tu soubeste de tudo? – Indagou – Foi algum espião? Os meus pais? Espera… tu não conheces os meus pais… na verdade, nem eu os conheço bem…


- Como eu soube? Isso é irrelevante…
- Sim, tens razão.
- Tu não conheces bem os teus pais? Os… adoptivos?
- Não… em pequena eles aproximaram-se de mim, mas eu era uma miúda, por isso eu mal me lembro. Agora eles só se interessam pelo trabalho.
Sorri ligeiramente, para libertar aquele ambiente de tensão que começava a surgir lentamente.
- Desculpa, Melody! – lamentou a Sarah – Desculpa por tudo o que te fiz passar! Eu falei-te mal, gozei-te… Não o devia ter feito. Até te estou eternamente grata!
- Porquê? Eu não fiz nada!


- Fizeste! Fizeste-me abrir os olhos… se não fosses tu eu continuava cega em relação à realidade. Eu recusava-me a aceitá-la, mas graças a ti, aceitei-a com a maior das facilidades! Obrigada!
- Oh, não me agradeças. Bem… está quase na hora, vou ter ali com a… Cassie, e com o… Jake.
- Vocês fazem um casal muito bonito! Tu e o Jake!
Sorri, perante aquele elogio inesperado, e virei costas instantaneamente, retornando à minha mesa onde a Cassie não hesitou em bombardear-me com perguntas.

Capítulo 100 + Curiosidades

***



Acordei de manhã bem cedo, quase não conseguia dormir de tanta ansiedade que aquele dia chegasse. Continuava a achar que talvez o pudesse ter feito antes, mas pela primeira vez achei que os meus pais tinham razão: não podia aparecer lá depois daquela notícia ter percorrido o mundo, pelo menos enquanto as pessoas continuassem a falar do assunto. Mas naquele dia ia erguer-me, outra vez, e recomeçar a minha vida. Não era uma notícia sobre eu ser órfã que me ia impedir de continuar com a minha vida… muito pelo contrário, devia enfrentá-la ainda com mais determinação, porque não me podia abalar e dar a entender às pessoas que era uma covarde. Não! Devia prosseguir com a minha vida, e esquecer todos os boatos e notícias que quase me destruíram a vida.
Desci as escadas e fui tomar o pequeno-almoço. Os meus pais já estavam acordados, para grande azar meu. Sentei-me à mesa e limitei-me a comer o meu pequeno-almoço.
- Então? Não falas? – Perguntou a Mãe, enquanto mastigava elegantemente o seu pão integral com manteiga sem sal.


- Bom dia… eu disse bom dia…
- Porque acordaste tão cedo? – Perguntou o Pai.
- Vou para a escola.
Nesse momento, ouviu-se um pequeno e quase inaudível engasgo por parte da mãe. Levou o seu copo de leite de soja à boca e deu um pequeníssimo gole, para recuperar. Bem podia ter dado um gole maior, para eu poder sair dali.
- Tu vais o quê? Só podes estar a brincar! – Vociferou agudamente.
- Porque não?
- Filha… - Interveio o pai, gentilmente – Eu não acho que seja a melhor ideia. A notícia de que tu és órfã ainda está muito recente, se fores para a escola vais fazer com que todos te olhem de lado…


- E qual é o problema? Isso não me interessa… tenho de voltar à escola, estou a perder matéria e no final do ano tenho exames!
A mãe soltou um riso de escárnio, troçando do que eu tinha dito.
- Já viste, Jordan? Agora a nossa filha está a armar-se em estudiosa…
- Pensei que vocês, como meus pais, me iriam apoiar nesta decisão! Eu não posso faltar mais à escola!
- Caso não saibas… - continuou a mãe – hoje é um dia muito importante para mim, ou já te esqueceste? Vai ser o desfile da minha nova colecção Outono/Inverno. Era suposto tu ires lá para me acompanhares e apoiares!


- Como é que queres que eu te apoie se nem tu me apoias nas minhas decisões?
- Sarah! – Vociferou o pai – Não fales assim para a tua mãe!
- Porquê? Não posso? Que eu saiba nos últimos anos vocês às vezes nem me viam dias e dias seguidos, e nem um telefonema ou uma mensagem me mandavam para saber se eu estava bem! Nessa altura eu fazia as minhas próprias decisões enquanto vocês se preocupavam mais com o vosso trabalho do que comigo! Agora não percebo o que vos deu na cabeça para se armarem em pais responsáveis!


- Tu sabes muito bem que o nosso trabalho exige muito tempo do nosso dia-a-dia! – Explicou impacientemente a mãe - Tu esqueces-te de quem te adoptou naquele orfanato? Se não fossemos nós tu ainda estavas trancada naquela espelunca!
- Talvez até me sentiria mais feliz, se assim fosse! Pelo menos lá recebia carinho! Claro… claro que vocês, quando me adoptaram, mo deram, mas agora…
- Talvez fosse mesmo melhor não te termos adoptado… para depois não dares valor a quem te deu de comer, quem te deu uma casa… quem cuidou de ti!
- A maior parte das vezes quem cuidava de mim era a nossa empregada!
O pai permanecia calado, a comer apressadamente o seu pão.
- Ouviste isto, Jordan? Agora culpa-nos a nós por fazermos a empregada cumprir as suas funções!


- Ela não era uma Ama! – Exclamei – Mas não vale a pena. Estou a ver que falar para vocês é como falar para desconhecidos! Eu vou para a escola…
- Sarah! – Chamou o pai.
Mas eu não respondi, peguei na minha mala e saí de casa, batendo com a porta.

***

O Jake e eu estávamos a ir para a escola a pé. A sua mota estava na oficina para revisão, e mesmo que não estivesse, eu recusar-me-ia a ir nela. O meu pavor a motas não mo permitia.
- Continuo a achar que devias ficar em casa… - Insistiu o Jake.


- Jake! Se o médico me deu alta é porque eu já estou bem! Não fazia sentido permanecer em casa, sabendo que estou bem…
- Correcção! “Achando que estás bem”… Tu ainda não estás bem, Mel!
- Ai, Jake! Que coisa! Eu sinto-me bem, sim?
- Pronto… eu não insisto.
- Além disso eu… não consigo estar em casa durante muito tempo. Continuo a ser invadida por recordações inevitáveis que ela me traz… só de pensar no que já se passou lá…


- Compreendo… mas não podes pensar sempre nisso! Também aconteceram coisas boas lá, não é? Tens de esquecer isso… é o teu lar…
- Eu sei Jake, mas não consigo. Depois de tudo o que passei, eu… eu sinto-me impotente para seguir em frente.
O Jake envolveu o seu braço nos meus ombros, dizendo-me com ternura:
- Tu vais conseguir, Melody… tu vais conseguir…


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-- Curiosidades --

- A ideia desta história surgiu enquanto estava à espera que a minha mãe me viesse buscar à escola;
- Quando pensei na história da Melody, inicialmente, optei por um tema sobrenatural, em que ela achava este mundo muito imperfeito e que era transportada para um outro mundo governado por criaturas com uma mentalidade perfeita sobre a sociedade;
- Quando pensei no visual da Melody, baseei-me na Branca de Neve, pela pele clara e o cabelo escuro como o ébano (a ideia dos olhos verdes não tem origem nenhuma);
- Só tive a ideia de escrever um tema mais verídico quando comecei a observar certos comportamentos da minha turma que encaixavam perfeitamente na minha história;
- Quando criei o tio Arthur, considerei-o o “vilão” da história, que tinha atropelado de propósito a mãe da Melody para perder o bebé, só depois o considerei um elemento condicionante que fizesse a Melody entrar na Igreja;
- No primeiro capítulo, pensei em começar a história, não com o nascimento da Melody, mas com a mãe da Melody a acariciar a sua barriga, em frente ao espelho;
- Inicialmente não pretendia criar nenhum romance entre a Melody e o Jake;
- Esta série não vai ter temporadas, por agora, daí a ter uma quantidade superior de capítulos, pois não existe nenhum ponto de divisão coerente na série, onde consiga equilibrar bem a história de forma a poder dividi-la em duas partes ou mais, pois, esta série foca-se na história do passado da Melody, e não fazia sentido dividir isso em temporadas;
- Existem, no meu jogo, mais de 20 saves, cada um para cada momento específico da história: um para as sombras do passado da Melody, por exemplo, onde entram bastantes personagens difíceis de fundir numa só família;
- Criei a festa na praia nos capítulos iniciais da Melody, por estar ansioso pela chegada do Verão;
- Inicialmente não queria mostrar o passado da Melody tão detalhadamente, apenas querendo-me focar na noite do parto da sua mãe;
- Nas sombras do passado do Dave, no início, não pretendi mostrar uma vida sofredora, mas sim uma vida popular e ostentosa, rodeada de amigos, mas depois achei melhor inserir um pouco de drama;
- Desde o primeiro capítulo que guardo todas as fotos que tirei para a série. Ao todo são 5247, as que foram para o blogue e as que saíram mal ou as que achei desnecessário pôr.

Capítulo 99

Não levou muito tempo até recuperar por completo e o médico me dar alta do Hospital. Ainda estava decepcionada com o meu pai, quando eu lhe disse que tinha estado com a mãe. Fiquei um tanto ou quanto admirada por ele não acreditar em mim. Sabia que era uma história difícil de digerir, mas mesmo assim estava com esperanças que ele me compreendesse.
Quando voltei para casa, o que não me faltou foi atenção por parte do meu pai, alimentada pela preocupação e receio que eu tivesse mais alguma dor de cabeça, ou até mesmo uma suposta recaída, isto, considerando aquilo que eu tive uma virose ou uma outra e comum gripe. Mas eu sabia que não ia ter mais nenhuma recaída, pois tinha desmaiado para estar com a minha mãe, e sabia que aquele momento não se ia repetir.
- Queres que te traga uma manta, filha? – Perguntou o pai, enquanto fazia questão de me acompanhar para todo o lado da casa, excepto na casa de banho onde eu fazia mesmo questão de estar sozinha.
- Pai, eu já disse que estou bem!


- Da outra vez disseste isso e acabaste numa cama de Hospital!
- Mas eu estou bem, agora! A sério! Não estou a esconder!
- Pronto, está bem… se não quiseres ir à escola amanhã, não vás! Tudo para a minha menina ficar boa!
- Pai, já não sou uma bebé!
- Para mim és! Sempre! Desculpa filha, mas quando tu desmaiaste e… paraste de respirar, pensei que te ia perder! Minha querida filha!
- Pai, já passou! A sério, agora eu estou bem! Vou para o quarto, ler um pouco.
- Vai lá… vou preparar o jantar!


Subi as escadas e encaminhei-me para o quarto. Na minha mesa-de-cabeceira, consegui vislumbrar a fotografia da minha mãe, emoldurada e salpicada pela luz laranja do candeeiro do tecto. Estava particularmente satisfeita, naquele momento. Sabia que ao olhar para aquela fotografia não ia estar a ver nunca mais uma mulher, para mim, desconhecida, mas sim uma heroína que eu admiro amavelmente. Já não ouvia a sua voz na minha cabeça, nem via coisas que iam além da minha imaginação. Já não receava mergulhar nos meus pensamentos sem encontrar algo que me assustasse ou que me intrigasse. Agora só mergulhava em pensamentos inócuos e felizes, os quais eu irei preservar para sempre.
Sentei-me na cama e peguei no meu livro. Na verdade, nem tinha muita vontade de ler, apenas o arranjei como pretexto para escapar das atenções do meu pai, que naquele momento devia estar a preparar o jantar muito cuidadosamente e a pôr a mesa como deve de ser, pondo os talheres na posição correcta e direitos, e não como ele fazia sempre todas as noites, colocando-os à pressa, num lugar aleatório.


Voltei a pôr o meu livro na mesa-de-cabeceira e recostei-me na minha almofada. Apesar da felicidade que me inundava o coração, não conseguia parar de pensar nas supostas visões que eu poderia ter no futuro, tal como a minha mãe me disse. Eu vivia, realmente, num poço de recordações, hostilizado por todas as pessoas que me rodeavam e que se recusavam a acreditar que aquilo era real. A Igreja dos Três Bispos, o poço, a cave, a casa da minha avó e até a minha própria casa, faziam-me pensar no que se tinha mesmo passado, havia anos atrás.
Obviamente que não considerava tudo uma má recordação, muito pelo contrário. Tudo me parecia tão real e feliz que me fazia esquecer todas as outras más experiências. Essas más experiências também não me eram indiferentes. Ainda não as conseguia encarar de sangue frio. A minha discussão com o pai, as várias visões que tive que quase me levaram ao desespero, a morte da minha mãe e o forçado confronto com verdades que eu não tinha coragem de encarar. Todo esse conjunto de más recordações ainda me assustava profundamente.


Fechei os olhos a abanei a cabeça, para tentar esvaziar a minha mente daqueles pensamentos. Para me acalmar, pensei no Jake, que sem dúvida era uma óptima experiência. Tê-lo conhecido fez-me erguer a cabeça e ter uma certa vontade de acordar de manhã e encarar um novo dia, ao seu lado.
O Dave, que na verdade eu não conhecia assim muito bem, também era uma delas. A sua pureza de alma e humildade fizeram-me aproximar-me dele e dar-lhe companhia, no momento em que ele se sentia mais só.
A Cassie, embora as desavenças que tive com ela, também estava nos meus pensamentos. Naquele momento já a encarava como uma melhor amiga, e não como uma fã obcecada da Sarah e uma rapariga histérica. Bem, na verdade, os seus ataques de histerismo continuavam bem altos, mas isso já se tornava irrelevante para mim.
A Sarah… nunca mais tinha ouvido falar dela, desde aquele dia em que eu a confrontei com toda verdade. Perguntava-me onde é que ela estaria naquele momento. Tinha recomeçado a sua vida? Tinha finalmente mudado o seu espírito? Tinha assentado com os pés na terra e encarar a vida de uma forma mais considerável? Não fazia a menor ideia, mas também não consegui mergulhar muito nesse assunto, pois deixei-me adormecer.


Várias imagens fragmentadas passaram-me à frente dos olhos, como flashes. As vozes mantinham-se num ecoo imperceptível.

- Tu estás a dizer que… apesar do número infinito de visões que eu já tive, que ainda há mais?
- Sim…


- Tu não fazes ideia do poço de recordações em que vives… Melody!


- Eu estive com ela, pai! Estive com a mãe!


- Melody… minha linda… vai jantar! Vai… jantar…

Acordei num sobressalto, com o pai mesmo ao meu lado:
- Melody! Anda jantar!


Levantei-me, confusa e ensonada. Com a ajuda incondicional do meu pai, como se eu não pudesse andar, encaminhei-me para a cozinha.

Capítulo 98

Levantou a sua mão, muito lentamente, enquanto olhava para mim com um sorriso encantador e bondoso. Nada me fazia prever o que ela ia fazer a seguir.
Pegou na minha mão, levantou-a, e acariciou-a. O meu coração pulou naquele momento, como nunca antes tinha pulsado. Estava de mão dada com a minha mãe!


Tudo pareceu mudar naquele momento… a imagem que via parecia mais brilhante e mágica e o arbusto oscilava com mais intensidade, soltando fragmentos dos seus ramos e flores, que também brilhavam como estrelas num céu nacarado.
Ter a sua mão entrelaçada na minha era uma sensação demasiado boa para ser realidade. Sentia-a presente, afeiçoada a mim, unida... Era como se aqueles dezoito anos sem ela nunca tivessem existido. Toda a força que emanava daquele pequeno gesto fazia-me esquecer tudo o que já passara, para me dedicar apenas ao presente. A felicidade transbordava do meu peito, a alegria inundava os meus olhos. Olhei para a minha mãe, e ela sorriu para mim. O seu sorriso doce e chilreante fazia lembrar o meu, numa fotografia que a minha avó apelidava como sendo a fotocópia da minha mãe. Como podíamos ser tão parecidas? Olhar para ela era como olhar para um espelho. Via a imagem da pessoa em que me queria tornar. Ela era como se fosse o meu exemplo de vida. Apesar de não a conhecer, de nunca a ter visto realmente, imaginava-a como uma mulher forte e corajosa, de pés bem assentes na terra. Queria ser lutadora, ter vontade de vencer, ambição sem exageros, tal e qual como ela. E trabalhava todos os dias para ser a pessoa que imaginava que ela seria.


No meio destes pensamentos, de repente, os seus olhos verdes tornaram-se em dois reflexos sem vida, a sua cara tornou-se transparente e parecia uma mera ilusão óptica e o seu corpo desfez-se como fumo.


Uma imagem turva e confusa veio sobrepor-se á antiga. Instintivamente, olhei para a minha mão, que supostamente segurava a da minha mãe. E na realidade, segurava uma mão. Mas era diferente... mais ossuda, mais morena e menos delicada. Apercebi-me então que todo o ambiente em volta mudara. O arbusto desaparecera. Diante dos meus olhos, estavam quatro cabeças. A Cassie, o Jake, o Michael e o meu pai que agarrava a minha mão.


Nem sinal da minha mãe, nem de nada que pudesse fazer de novo a conexão entre nós. Todo o calor daquele momento lindo entre nós duas parecia ter sumido como por magia.


Conseguia reconhecer as faces que se empoleiravam sobre mim, embora a imagem que os meus olhos viam fosse ainda muito ténue. Os mesmos eram inundados por uma luz forte, de cor branca, transmitida por um candeeiro de tecto, aparentemente quadrado. E passados alguns segundos comecei a ouvir as vozes pertencentes às pessoas que me rodeavam. Estas ainda permaneciam quase inaudíveis, acompanhadas de um ecoo sobrenatural, mas à medida que o tempo passava, mais audíveis essas vozes se tornavam, e aí consegui perceber que a voz que se fazia ouvir era da Cassie:
- Olhem! OLHEM, OLHEM, OLHEM! Ela está a acordar!
O meu pai, que parecia estar com os olhos fixos na minha mão, levantou rapidamente a cabeça, com uma expressão de extremo alívio.
- Oh! Graças a Deus! – Agora era uma voz masculina, que percebi perfeitamente que era do meu pai.


Agora a imagem ia ficando cada vez mais nítida, assim como as vozes se tornavam perfeitamente audíveis. Ia abrindo muito lentamente os olhos, o meu corpo ainda estava extremamente sensível e fraco.
- Pai? – Indaguei, olhando para o lado.
- Filha! Estou aqui! Está tudo bem! Já passou!
Olhei para a frente, onde estava o Jake, com um sorriso na cara, a Cassie, com os olhos arregalados e com a respiração extremamente acelerada, como se tivesse recuperado de um grande susto, que é fácil de prever qual, e o Michael, que eu mal conhecia mas que no entanto estava ali presente, em nome do Jake.
- Estás bem, amor? – Perguntou o Jake.


- Sim, estou… estou bem., sim – nesse momento lembrei-me do Torneio de Rugby que tinha sucedido. – Ganharam? – Ao perguntar aquilo consegui notar uma expressão confusa de todos os que me rodeavam. – Ganharam? O torneio!
A Cassie olhou, séria, para o Jake, que olhava para mim igualmente sério. Quase que conseguia prever a resposta.
- Bem… - Começou o Jake – quando o Michael me disse que tinhas desmaiado, eu não consegui jogar mais… a equipa teve de continuar o jogo sem mim… e… - baixou-se e abriu o seu saco, tirando de lá um objecto dourado e portentoso – GANHÁMOS!


- Falem mais baixo! – Exclamou o pai, num sussurro.
- Não faz mal, pai – disse – fico tão feliz por vocês! A sério! Por momentos pensei que não tinham ganho!
- É… mas isso devo-o à equipa, que se portou lindamente!
- Pudera… com um capitão assim, quem não se portaria? – Elogiei, inconvenientemente.
- HUU! Que amor! – Exclamou ainda mais inconvenientemente a Cassie.
Houve um momento de silêncio, enquanto o Jake arrumava outra vez o troféu no seu saco, até que o meu pai falou:
- O que aconteceu contigo… foi muito estranho! Quando paraste de respirar vi a minha vida a andar para trás! Os médicos não detectaram nada que pudesse causar essas dores agudas e esse desmaio… é um autêntico mistério! Filha… porque não me contaste antes que não te sentias bem? Escondeste essas dores! Porquê?


- Não te queria preocupar, Pai… já tinhas tanto com que te preocupar, e além disso não achava que fosse um assunto assim tão importante… pensava que eram… enxaquecas, mais nada.
Nesse momento, o Jake, o Michael e a Cassie levantaram-se para me deixarem sozinha, afirmando que eu precisava de descansar. Quando o pai se preparava para se levantar também, eu pedi que permanecesse ali para poder falar com ele.
- Diz, querida!
- Pai… eu… eu queria falar contigo sobre o meu desmaio!
- Sim…?
- Eu não desmaiei… propriamente. Eu não sei… acho que abandonei o meu corpo, indo ter a um lugar maravilhoso!


- Um lugar maravilhoso?
- Sim! E nesse lugar estava a mãe! Eu estive com ela, Pai! E toquei-lhe! Conversámos!
- Sim, filha! Claro… o médico disse que se calhar ias acordar um pouco baralhada, descansa! – Levantou-se e deu-me um beijo na testa.
Senti uma pontada de indignação por aquele momento. O pai não acreditava em mim, porque pensava que eu estava baralhada? Mas não me quis enervar naquele momento.
Permaneci quieta a olhar para o tecto, observando a luz do candeeiro que agora já estava mais fraca. Acariciei a medalha esférica e maciça, com uma lua e uma estrela meticulosamente cravejadas, do meu colar, pensando na minha Mãe. O momento que tive com ela ia ficar gravado na minha mente, para o resto da minha vida.