Capítulo 103
Passei a maior parte dos dias seguintes a resumir o meu dia-a-dia a apenas escola e casa. Apesar dos convites que eu recebia do Jake e da Cassie, não me dava vontade de os aceitar. Passava a maior parte do tempo em casa, ora a fazer trabalhos de casa, ora a estudar, ou ainda, a ler e reler a página do diário do meu pai. Não conseguia controlar a nostalgia que sentia dentro de mim sempre que lia aquela carta, mas ao mesmo tempo ficava satisfeita por a ler. Aquela era a razão pela qual eu tinha perdoado o pai, era a razão por que ele escondeu a morte da mãe.
Mas o que não me punha nada satisfeita, era o facto de o tio Arthur ainda não ter tido conhecimento de absolutamente nada. Ele não sabia a razão pela qual o pai tinha escondido a morte da mãe todos aqueles anos, o que desencadeou um mau relacionamento entre eles, dividindo a nossa família em dois: a da parte da minha mãe e a da parte do meu pai. E isso transtornava-me profundamente, pois era naquela altura que a nossa família tinha de estar mais unida do que nunca.
Levantei-me bruscamente da cama, em consequência de uma súbita e brilhante ideia que tivera naquele instante. Arranquei uma folha de um dos meus cadernos da escola, peguei numa esferográfica e comecei a escrever.
Desci as escadas, satisfeita, e deparei-me com o meu pai no sofá:
- Pai, tens algum envelope?
- Uh, o quê? – A sua voz tremula denotava que estava a dormir.
- Um e-n-v-e-l-o-p-e! – Repeti, dando ênfase a todas as letras.
- Ah, está um molho na gaveta da cozinha…
- Obrigada!
O pai continuou a dormir, enquanto eu fui á cozinha e retirei de lá um envelope. Depois, voltei para o meu quarto.
Assim que acabei de escrever a carta, reli-a umas dez vezes, anexei a página do diário do meu pai e depois pu-la no envelope e preparei-me para ir aos correios. Sabia que tinha de fazer aquilo. Não podia deixar o meu tio julgar o meu pai por um acto que ele não cometera. Tinha que lhe dar a descobrir, da mesma maneira que eu mesma descobrira, que o que o meu pai fizera tinha uma lógica, uma razão. Eles não se davam bem, e eu não podia permitir que a família que ainda me restava se desse mal. Tinha receio que o meu pai desse pela falta da página do diário, mas tinha mais medo que o meu tio continuasse sem saber a verdade. Por isso, enchi-me de coragem e sai de casa, decidida a esclarecer todo aquele mal entendido. No fundo, eu acreditava que tudo se ia recompor e foi com esta esperança que empurrei a pesada porta dos correios, entrei e, segundo a orientação de uma senhora velhinha, depositei a carta no marco vermelho. Agora só me restava esperar que, no dia seguinte, o meu tio a lesse. E depois… depois, íamos finalmente dar-nos todos bem, por o passado atrás das costas e ser um protótipo de uma família feliz.
* * *
Acordei de manhã cedo, impulsionado pela dificuldade em dormir, depois de um pesadelo que tive durante a noite. Levantei-me e dirigi-me ao Altar da igreja, onde raios dourados penetravam pelas janelas com os desenhos góticos, já gastos, esculpidos nos vidros, o que conseguia dar uma suave tonalidade a esses raios de sol que insidiam sobre elas.
Desci lentamente a curta escadaria do Altar. Caminhei pelo santuário atapetado, olhando em redor, para os bancos, para as velas apagadas e para as estátuas que repousavam em frente às janelas. De facto, olhava mais para uma, observando os seus detalhes que se mostraram resistentes com o passar dos anos. Aproximei-me da estátua da Melody, não conseguindo tirar os meus olhos dela.
Conseguia lembrar-me, quando eu próprio a esculpi, atendendo a todos os seus pormenores, principalmente na cara. A estátua era elegante, com um grande vestido e agarrava os seus longos cabelos. Tal como ela. Quase conseguia imaginá-la a mexer-se, os seus olhos a ganharem a cor verde-água, e a olhar para mim, dizendo que estava tudo bem e que ia voltar dali a uns dias, viva. Conseguia imaginá-la a movimentar-se e a descer daquele pedestal e a vir até mim.
Mas rapidamente acordei dos meus pensamentos quando alguém bateu à porta.
- Já disse que esta igreja está… - quando abri a porta vi que era o carteiro – encerrada… Desculpe, posso ajudá-lo?
O Carteiro, com uma cara aterrorizada, talvez por ainda não estar penteado, tirou da sua mala uma carta, dizendo, tremulamente:
- Tem correio, senhor!
- Correio? Deve ser engano, eu nunca recebo correio…
- Eu tenho a certeza que é esta a morada…
Peguei na carta e olhei para a morada. Era mesmo aquela.
- Obrigado…
Fechei a espessa porta de madeira e dirigi-me ao escritório. Por que haveria alguém de me enviar uma carta? Nunca tinha recebido correspondência até então, pelo que me levou a abri-la ainda com mais curiosidade.