Capítulo 110



- O que é que tu estás a dizer?
O pai ostentava uma cara muito séria, como se tivesse recebido uma notícia trágica. Talvez até fosse, na sua óptica, uma notícia mesmo trágica.
- Pai! Eu vejo a maneira como olhas para o teu quarto, quando abres a porta para lá entrar! Eu vejo a maneira como tu olhas para a moldura do teu casamento! Tu recordas-te pai! Recordas-te de todos os dias que aqui passaste, de todos os anos! Recordas-te!
- Pois recordo, Melody! Mas isso não significa que seja uma coisa má!
- E não é, pai! Mas também não podemos estar agarrados ao passado por muito mais tempo, caso contrário estaremos ambos tão vulneráveis como há meses atrás, quando nos separámos!


O pai denotou uma expressão confusa, pelo que eu me aproximei mais dele, para lhe explicar mais pausadamente, tentando controlar o meu nervosismo.
- Pai… se estivermos sempre presos ao passado, isso significa que nunca poderemos avançar com as nossas vida, nem nunca poderemos encará-la de uma forma feliz!
- Mas filha, mudarmos de cidade significa estarmos a largar tudo o que mais prezámos estes últimos anos!
- Pai! Tudo o que sempre prezámos está no nosso coração! Percebes? – um brilho enorme inundou-me os olhos, dando-me uma estranha vontade de chorar naquele instante.


O pai manteve-se em silêncio durante algum tempo, olhando para mim sem saber o que responder. Talvez ele achasse que eu tinha razão, ou apenas não conseguia falar pelo choque de eu querer largar tudo.
- Melody… isso é uma loucura! Tu tens aqui a tua Escola, os teus amigos! E eu tenho o meu emprego!
- Pai, para onde nós formos de certeza que iremos encontrar lá montes de escolas, e eu pesquisei sobre a empresa onde tu trabalhas! É das empresas que tem mais franchising por todo o País! Tu podes pedir transferência!
- Não é assim tão simples, Melody!


- Porque tu não queres! Eu compreendo-te pai! Eu sei que deve ser difícil largar esta casa, vendê-la a pessoas estranhas que não fazem a mínima ideia do que já se passou aqui!
- Vendê-la? – repetiu, num tom de espanto – Tu nem penses que eu vou vender esta casa, Melody Knight! Nem penses numa coisa dessas!
- Porquê?! Pai, esta pode ser a nossa oportunidade vitalícia, para recompormos a nossa vida, ou até mesmo refazê-la! Tudo o que tivermos a levar desta casa, será guardado no nosso coração! Não te esqueças do que sempre me ligou à mãe! – peguei na medalha do meu colar pondo-o bem visível.
O pai baixou a cabeça, ficando a olhar para os mosaicos azulados do chão da Cozinha. Voltou a olhar para a janela, contemplando o céu nacarado. Não dizia nada, talvez nem conseguisse.


Eu compreendia perfeitamente a sua posição: era difícil largar tudo o que ele mais prezou na vida. Naquela casa ele podia manter o amor entre ele e a mãe mais vivo do que nunca. Mas não era apenas aquela casa, eram as recordações que retivemos no decorrer dos anos. Quando o pai e a mãe se conheceram, quando ele pediu-a em casamento. O amor eterno que os ligava era mais forte do que qualquer símbolo que o representasse… era por isso que eu me queria mudar, porque aquela era a nossa única oportunidade para levarmos connosco o que mais gostamos, e deixar para trás tudo o que sempre nos atormentou… Desde que voltara para casa que eu não conseguia olhar para aquela cozinha, ou para aquela sala, numa óptica de bem-estar e de conforto. Só me conseguia lembrar do dia em que a mãe morreu, e tudo começou naquela casa. Não me conseguia conformar com isso! Simplesmente não conseguia!
Voltou a virar-se para trás, com os olhos semicerrados.
- É isto que tu queres, Melody? Mudar-te… largar tudo isto?


- S-sim… pai, é a nossa oportunidade de começarmos uma vida nova, lado a lado, pai e filha!
- E largar isto tudo?
- Nós não largamos! Não percebes? Apenas mudamos de cidade!
- E vais deixar os teus amigos da escola? A Cassandra? O Jake?
- Nós nunca iremos perder os contactos!
- Isso é uma loucura, filha! – exclamou o pai, andando de um lado e para o outro.
- Nestes últimos meses eu aprendi uma coisa… às vezes a nossa vida resume-se a um único passo louco! E eu estou disposta a dá-lo neste momento!


- Será que estás mesmo?
O pai mostrava muita insegurança em relação àquela minha decisão, mas eu sentia uma pontada de esperança a invadir-me o coração… ele podia aceitar!
- Estou! – respondi, convicta.
- Sabes… às vezes eu também fico um pouco triste aqui… não sei, é algo inexplicável. Sinto-me deprimido. Mas mesmo assim, filha! É uma decisão muito drástica! O que vais dizer aos teus amigos?
- A verdade… eles de certeza que compreenderão! Tal como tu disseste… são meus amigos!
Fez-se, mais uma vez, silêncio um tanto ou quanto desconfortável. Sabia que o pai estava a pensar sobre a minha decisão, e não devia ser nada fácil para ele tomá-la. Mas aquela espera torturava-me!
Deu um profundo suspiro e fechou os olhos…

***

- George… ouve a tua filha! Ouve-a!

***

Voltou a abrir os olhos, confuso, olhando em redor.
- O que se passa? – perguntei, estranhando aquela sua reacção.


- Ouviste isto?
- O quê?
- E-esquece… bem, Melody. Tens noção de que a tua decisão é muito drástica!
- Sim, pai! Tenho! Mas sei que vai valer a pena! Eu sei!
- Eu confio em ti, filha! Apesar de ainda não me ter conformado eu… eu vou aceitar! Quando é que partimos?

Capítulo 109

Os dias seguintes passaram muito lentamente, como se os minutos se transformassem em horas, e estas em dias. Disfarçava sempre que estava com o pai, mas às vezes não conseguia evitar a nostalgia que sentia dentro do meu coração. Era algo indescritível, algo que me fazia reflectir sobre certas decisões.
E com o passar dos dias não consegui mais esconder aquela tristeza. Começou a tornar-se inevitável. Começava a sentir uma corrosiva vontade de desabafar com alguém, e a pessoa certa era o meu pai.
Enquanto jantávamos, nem eu nem ele dizíamos nada. Limitávamo-nos a comer, olhando ambiguamente um para o outro.
- Mel – falou o pai, enquanto pousava os talheres no prato, demonstrando que não queria comer mais – tu estás bem?
- Eu? Eu estou óptima! – exclamei, desistindo da ideia de desabafar – Porque dizes isso?


- Porque tu não estás bem! Já reparaste no que tu tens comido? E na tua disposição há alguns dias atrás? Porque estás assim filha?
- Eu já disse que… estou bem… - suspirei e pousei igualmente os talheres no prato – Não… não estou bem.
- O que se passa?
Levantei-me bruscamente da mesa, devido à inquietação que sentia naquele momento.
- Pai, eu tenho pensado… pensado mesmo muito! Tenho ponderado, reflectindo… tentando procurar uma resposta para esta minha pergunta… e só tenho encontrado uma… uma apenas!


- Mas… qual pergunta? – perguntou o pai, céptico.
- Será isto o melhor para mim? É nisto que eu tenho pensado pai!
Calcorreava a cozinha para trás e para diante, levando as mãos à cabeça, confusa.
- Melhor para ti? O quê?
- Isto, pai! Esta casa onde vivemos, este sedentarismo do qual nunca nos livrámos! Pai… - sentei-me de novo à mesa, olhando-o nos olhos – desde que o tio Arthur se foi embora não tenho parado de pensar nele!
- Tens saudades? – inquiriu o pai, com o sorriso doce.
- Sim! Mas não se trata disso! Não tenho parado de pensar… na sua decisão! Dele ter-se ido embora! Embora daqui!


O pai levantou-se, com as sobrancelhas franzidas.
- Melody… agora quem não está a perceber sou eu!
- Pai, ouve-me! Tu sentes-te bem aqui? Nesta casa?
- É claro que sim, Mel! Este é o nosso lar!
- Mas tu nunca te sentiste deprimido aqui? Relembrando-te de tudo o que já se passou aqui, no dia em que a mãe morreu?
- Melody, não podemos pensar assim! Pensa também nas recordações boas! Essas não te põem feliz?
- Sim… e não! Mesmo pensando nas recordações boas, nunca me consigo livrar das más! E além disso, no fundo, as recordações boas também me trazem uma certa tristeza!


- O quê? – o pai começou a ficar indignado.
- Pai, essas lembranças apenas me dizem o que eu já sei, e o que eu quero evitar saber! Nunca mais teremos a mãe de volta! Ela está nos nossos corações, sim! Mas não a teremos mais ao pé de nós!
O pai começou dirigiu-se à janela, observando o céu estrelado daquela noite fria de Inverno.
- Ainda não percebi onde queres chegar, Melody…
Inspirei para falar, mas hesitei a início. Não tinha a certeza se ele ia aceitar aquilo ou não. Ele podia até levar a mal!
- Eu quero mudar-me! – exclamei, quando finalmente ganhei coragem para falar – E não só de casa! Quero mudar de cidade!


Ele olhou para trás, deixando de observar o céu repleto de estrelas. Desta vez olhava para mim, com os seus olhos mais arregalados do que nunca, com a boca entreaberta num misto de indignação e consentimento.
Senti um arrepio. Uma voz no meu cérebro, que eu reconheci sendo a da minha mãe, dizia-me:

É essa a atitude correcta, Melody...

E ela tinha razão. Tinha de virar a página, entrar no capítulo final da minha história e recomeçar a minha vida longe de todas as memórias que a marcaram neste último ano. Estava na altura de conhecer-me a mim mesma e construir o meu futuro a partir do zero. As memórias e recordações invadiam-me a alma… Mas o dia de ontem não voltaria a chegar. E apesar de tudo, sentia-me agradecida pelos momentos felizes que presenciei. Iria sempre lembrar-me de tudo o que me tornou na pessoa que hoje sou. E não era nada fácil, dizer adeus. Foram 18 anos da minha vida que eu deitava para trás das costas, para recomeçar. Mas sabia que era a atitude correcta.

Agora podes ser feliz, querida...

Senti-me encorajada e impulsionada pela voz doce e sincera da minha mãe. De facto, era a atitude certa. Eu sentia que sim.


Capítulo 108

***

Desistindo de esperar pela Melody, que estava ligeiramente atrasada, eu e o Jake fomos para a sala de aula, para não apanharmos falta. Nunca vi professora tão implacável! Até tenho medo de dizer alguma coisa!
Quando chegámos à sala sentámo-nos nos nossos lugares. A professora ainda não tinha chegado, o que me deu tempo para tirar as coisas de dentro da mala e virar-me para trás, para dar uma palavrinha ao Jake.
- Jake!
- Diz… - respondeu ele.
- Tens reparado no comportamento da Mel nestes últimos dias? Parece que anda… sei lá… triste!


- Triste?
- Sim! Não achas? Sei lá, parece que anda menos contente!
- Sim, se está triste é porque está menos contente! – corrigiu ele, irritando-me.
- Jake, estou a falar de coisas sérias! A Mel não anda bem. Logo agora que estava supostamente tudo a correr bem! Porque estará ela assim?
- Não sei. Por acaso tenho reparado que ela anda diferente… mas triste?


- Sim! Já não está tão bem-disposta como dantes! O que será? Recusa os nossos convites para sair, assim que sai da escola enfia-se em casa… não percebo!
- Deve estar a descomprimir de tudo o que aconteceu! Ela sempre foi forte, e sempre aguentou tudo o que se passou na vida dela, e agora não aguentou!
- Mas agora era suposto ela estar mais animada, já que está tudo a endireitar-se!

***

Despedi-me com um beijo rápido na face do meu pai e sai do carro. Não estava propriamente tarde, mas também não era cedo e eu odeio chegar atrasada.


Dirigi-me num passo apressado á sala e verifiquei, com muito alívio, que a professora ainda não tinha chegado. Avistei o Jake e a Cassie, a falarem com um ar ligeiramente preocupado.

***

De repente, o Jake olhou para a porta. Por momentos pensei que era aquele demónio da professora, mas estava errada.
- Ssssh! Ela vem aí! – exclamou o Jake, dando-me um toque no braço.


***

- Bom dia! – cumprimentei.
- Me… Melody, bom dia – respondeu a Cassie, atrapalhadamente. Dedicou-se logo de seguida a escrever as lições no caderno.
- Bom dia, amor – saudou o Jake, com um ar ligeiramente comprometedor – Estavas aí há muito tempo?
- Não, cheguei agora mesmo – disse eu, curvando-me para o beijar.
A inquietude que a voz do Jake deixara transparecer não me deixou nada à vontade. E o ar superficial com que a Cassie se empenhara a escrever «Lição número 41 e 42» agravou ainda mais a situação.
- Estavam a falar de quê? – Indaguei, tentando não revelar as minhas desconfianças.
A boca do Jake abriu e fechou, sem sair qualquer som.
- Da universidade. De nós nos separarmos e assim… - Intrometeu-se a Cassie, com um sorriso triste.


Não cheguei a responder, porque a professora entrou e tive que me ir sentar de imediato. Mas fiquei muito mais tranquila. A conversa sobre a universidade explicava o ar preocupado que eles ostentavam quando cheguei á sala. Afinal, eram tudo conjunturas da minha cabeça…
Dediquei alguns segundos a olhar para a minha turma. Olhei para o lugar da Sarah, o segundo da primeira fila. Conseguia-se notar perfeitamente que ela tinha mudado, embora nem todos os colegas de turma estivessem dispostos para a aceitar. Emanava um sorriso bondoso da sua cara, enquanto tentava ajudar outros colegas ou simplesmente ouvir a professora. Parecia que estava contente por voltar à escola.


O Dave e a Lilly continuavam muito misteriosos. Mal falavam nas aulas mas os seus olhares entrecruzavam-se intensamente. Se havia amor entre eles, eu não sabia. Mas pelo menos estava mais descansada pelo Dave ter arranjado alguém que lhe fizesse companhia, para ele não se sentir tão sozinho na escola.


O Jake e a Cassie também continuaram estranhos o resto da aula. A Cassie olhava, ora para mim ora para o Jake, mas sempre que olhava para este, fazia um olhar estranhamente arregalado, abanando a cabeça inúmeras vezes seguidas. Um acto típico dela, mas que não deixava de ser estranho. Tentei convencer-me a mim própria que não se passava nada, e continuei atenta à aula.
Depois de almoço, o Jake e a Cassie convidaram-me para ir fazer alguns trabalhos de casa em atraso, e se os fizéssemos em conjunto, o tempo custaria menos a passar. Tive a brilhante ideia de os levar até ao pátio da escola, estando este deserto, seria um excelente lugar para trabalhar.
Sentámo-nos na relva à sombra de uma árvore e começámos pelos trabalhos de Matemática. Passados dois minutos, a Cassie fez-se ouvir:
- OK, eu não consigo! Isto é horrível! Eles querem matar-nos!


- Tem calma Cassie – acalmei-a – este exercício até é dos mais fáceis.
- Está bem, está bem… vou tentar! Pronto!
Houve um momento de silêncio, prolongando-se de alguns instantes para alguns minutos. Quando olhei para eles os dois, ambos denotavam uma cara comprometedora, olhando um para o outro.
- Isso é tudo sobre aquele assunto da Universidade? – perguntei.
- O quê? Universidade? – perguntou a Cassie, confusa.


- Estiveram aos segredos a manhã toda! O que é que se passa?
- Dizes tu? – sussurrou a Cassie para o Jake.
- Não, dizes tu! – respondeu o Jake, num igual sussurro.
- OK! Melody! – começou a Cassie pondo os livros na relva – Nós estamos preocupados contigo!
- Comigo? Porquê?
- Tu andas triste! Não andas bem!
- Mel – interveio o Jake – se tiveres algumas coisa para nos contar, sabes que estamos aqui para te ouvir! Não vale a pena esconderes, nós sabemos que não estás bem!


- Eu soube primeiro! – exclamou a Cassie, pondo o dedo no ar, como se estivesse na sala de aula.
- Nota-se assim tanto? – perguntei, ciente que já não valia a pena esconder.
- Sim!
- É que… o meu tio… o meu Tio Arthur, foi-se embora! Para a terra do meu avô.
- Então mas podes sempre visitá-lo!
- Posso! Mas acho que não é a mesma coisa! E além disso… a decisão dele fez-me pensar… e tenho estado a remoer no assunto há dias!


- A pensar em quê? – inquiriu o Jake, franzindo o sobrolho.
Inspirei para falar, mas não consegui projectar a voz.
- Nada… nada! – disfarcei – Vamos continuar os trabalhos?


Capítulo 107



Sentei-me na cama da Melody, a admirar a caixinha de música. A melodia doce e suave mergulhou-me num mar de memórias. Lembrei-me da Melody, em bebé, a mexer os pezinhos pequenos ao som da melodia da caixa, e a sorrir com os dentinhos brancos ainda a nascer. Relembrei os dias em que íamos andar de bicicleta. Ela, desajeitada, caía e chorava ao ver o sangue escorrer do joelho esfolado… voltávamos para casa e ficávamos horas perdidas a brincar com as suas imensas bonecas. Ela obrigava-me a escolher a roupa e depois zangava-me por eu não saber combiná-la. E antes de dormir, tinha de lhe contar uma história que ela nunca chegava a ouvir por completo… adormecia a meio, com os meus dedos grandes entre a sua mãozinha fina e delicada.


No dia seguinte, quando chegava da escola, exibia-se, cantando o alfabeto e explicando-me a tabuada, como se eu não soubesse. Relembrei o Natal dos seus 6 anos, em que me mascarei de pai Natal e tive o (des)agrado de a ver chorar, horrorizada, gritando pelo pai. Fora difícil para mim ignorar os sonhos e planos que eu tinha para quando a Melody nascesse. Dediquei-me de corpo e alma á minha filha. Queria poder-lhe dar tudo o que eu nunca tive acesso, justificar a ausência da mãe… e só recentemente, apercebi-me que a minha filha não precisava de nada disso. Bastava eu mostrar-lhe todo o amor que sempre senti por ela, para a ver feliz. Sem dar conta, encostei ao coração a caixinha de música, e soltei uma lágrima que foi cair delicadamente em cima do vestido de tule da bailarina. Quase jurei que uma nódoa no vestido dela desapareceu, como que por magia…
Foi então que me lembrei do dia em que vi a caixa de música pela primeira vez. Vi-a nas piores circunstâncias…

“Estava em casa, a cuidar da Melody, ainda bebé. Ela estava deitada no seu berço, a sorrir docemente para mim. Brincava com um dos seus peluches preferidos, enquanto eu pegava noutro peluche e fazia-o falar, como se fosse real. E nesse momento, o Arthur tocou à campainha. Sem esperar aquela visita, dirigi-me à porta e abri-a.
- Arthur… - nem o cumprimentei. A nossa discussão tivera ocorrido havia relativamente pouco tempo.
- Vim visitar a Melody – disse ele, retribuindo-me a antipatia.
- Pensei que tinha ficado bem claro que nunca mais te quero aqui… na minha casa!
- Esta casa não é só tua! Também é da minha irmã, por isso tenho o direito de ver a minha sobrinha!


Disse-lhe para entrar, contrariado, reparando no saco que ele trazia na mão.
- Olá, Mel! – cumprimentou, enquanto acariciava a sua carinha – Trago-te um presente!
Ao ouvir aquelas palavras, a Melody começou a sorrir com os seus dois dentinhos à frente.
O Arthur tirou do seu saco aquela caixa de música. Tal e qual como aparentava ser dezassete anos depois. Deu corda à mesma e abriu-a. A melodia começou a tilintar, fazendo a Melody baloiçar ligeiramente no seu berço. Deixou-a aberta ao lado da bebé e dirigiu-se a mim:
- George, eu sei que já falámos sobre o assunto, mas não consigo parar de pensar do que será da Melody quando souber que lhe escondeste uma verdade tão inevitável como a morte da minha irmã…
- Já não há nada para falar a esse respeito, Arthur! Pensei que o assunto tinha ficado encerrado! No que depender de mim, ela não vai saber de nada!


- Se a minha irmã estivesse aqui, iria ficar com um grande desgosto do seu marido!
Inspirei fundo e levantei o tom da minha voz:
- TU NÃO SABES NADA! NADA, OUVISTE? Tu não sabes o que a Melody acha ou deixa de achar! Tu não sabes o que ela quis do nosso amor, dias antes de morrer! Não sabes!
- Então explica-me, George!
- Não! Não vou perder tempo.
Dirigi-me ao berço da Melody e tirei a caixa de música, fechando-a e metendo-a dentro do saco de plástico, outra vez.
- O que estás a fazer? – perguntou o Arthur.
- Não quero nada teu! A minha filha não precisa de doações!
- Mas isso é para ela! É um presente!
- Não quero nada teu na minha casa, Arthur! Mete isso na tua cabeça! Agora sai da minha casa! SAI!”


Voltei a mim quando ouvi a voz da Melody a chamar por mim, sentada muito próxima…

***

Fiquei perplexa por ver o pai no meu quarto, a olhar fixamente para a caixa de música, observando a bailarina a rodopiar incansavelmente.
- Pai?
- Ah! Olá filha! – respondeu ele, fechando a caixa rapidamente.
Sentei-me ao seu lado e peguei na caixa.
- É linda, não é?
- É… é… bem, vou fazer o jantar.
- Sim, eu tenho trabalhos de casa que não quero deixar para as últimas.


Deu-me um beijo na testa e dirigiu-se lentamente para a porta do quarto. Foi então que me lembrei de lhe perguntar uma coisa que já queria perguntar há muito tempo. Uma coisa que me deixava angustiada e que me pesava como um pedregulho no meu coração. Fui impulsionada pela nostalgia que senti ainda mais, quando olhei para a foto da mãe.
- Pai!
- Diz filha! – respondeu, enquanto se virava para trás.
- Bem, hum… queria perguntar-te uma coisa! – levantei-me da cama e aproximei-me dele.
- Força! Não percebo nada disso que estás a dar na escola, já quase não me lembro mas no que te puder ajudar…
- As recordações – interrompi – que reténs desta casa… boas e más… não te incomodam?
- O quê? Não estou a perceber – o seu sorriso ia desaparecendo progressivamente.
- Tu sentes-te bem aqui em casa, sabendo que aqui já se passaram montes de coisas?
- Claro… é o nosso lar, filha! É o nosso lar. Bem, vou fazer o jantar.


Achei estranha a reacção do pai àquela pergunta. Pareceu que quisera fugir do assunto, sem querer desenvolver muita conversa a esse respeito. O que eu sabia, era que não me sentia bem. Apesar da maior parte das recordações serem boas, não conseguia evitar o ímpeto das recordações más que me vinham sempre à cabeça, o que começava a inquietar-me.


Capítulo 106

Os jantares comigo e com o pai já eram, por si, divertidos, mas naquele momento, com o tio Arthur, tornavam-se ainda mais! Ainda nem podia acreditar que o pai o tinha finalmente perdoado! Dezoito anos de pura rivalidade, mal se falavam, e agora estavam todos bem.


Claro que, tal como eu presumia, tiveram de colocar muita conversa em dia, por isso dirigi-me à sala para ver um dos meus programas preferidos, que ia passar na televisão daí a uns minutos.
Sentei-me no sofá e olhei outra vez para o saco do tio Arthur. Era um saco de plástico já desgastado, mas que no entanto não deixava revelar o que estava lá dentro. Senti-me tentada em abrir o saco e ver o que estava no seu interior, mas não queria mexer nas coisas do tio, ele podia ofender-se.


Mas não tive muito tempo para tentar desvendar o que estava dentro do saco.
- Já vi que a viste… - disse o tio Arthur, encostado ao vão do arco que dava acesso à sala, com um copo de Whisky na mão.
- Vi o quê? – perguntei, confusa, mas com um sorriso na cara.
- Ah, então parece que ainda não o abriste. Esperava que já a tivesses visto.
- Pensei que fosse algo de importante, percebes… só teu…
- E é importante! – exclamou, sentando-se no sofá e pousando o copo na mesa de apoio.
Pegou no saco e colocou-o ao seu lado. Ficou a olhar para ele durante alguns instantes, com um sorriso carinhoso na cara.
- Isto é para ti. É um presente muito especial!


- Para mim? – perguntei, surpreendida.
- Sim! Para ti! Abre!
Peguei no saco e abri-o. Senti um misto de nervosismo e curiosidade a invadir-me o peito. Não estava á espera de um presente!
Quando olhei para o interior do saco fiquei perplexa!
Era média, de cor vermelha, com serpenteantes padrões florais e com um coração branco na tampa. Era feita de uma madeira macia, embora um pouco farpada nos seus vértices. Num dos seus flancos havia uma manivela de metal, com a pega de borracha. A caixa de música que tinha visto na Igreja quando lá entrei pela primeira vez!


O tio Arthur não conteve a sua gargalhada genuína ao ver a minha cara surpreendida.
Mantendo essa expressão, rodei a manivela lentamente e quando a caixa se abriu num ruído suave, desenhei um largo sorriso.
Mal a caixa se abriu, uma música de embalar espalhou-se por toda a casa. Aquela música… eu tinha a certeza que já a tinha ouvido antes, porque lembrava-me dela como se já a tivesse ouvido, em tempos. Sentira o mesmo quando a ouvi na Igreja.


A bailarina rodopiava, embora através de soluços devido a ter alguns anos, achava-a encantadora. O seu vestido cor-de-rosa, um pouco sujo, com os seus pormenores ainda sobressaídos, fizeram-me brilhar os olhos.

E a música não parava de tocar…de tilintar a cada nota musical, a cada soluço da sua bela melodia...

- Eu fiz essa caixa, antes de tu nasceres, para te dar como presente, quando nascesses.
- A sério? Fizeste esta caixa?
- Sim… eu era muito dado a trabalhos manuais e achei que me sentiria bem em fazer-te essa caixinha de música. Ouviste-a pela primeira vez, quando estavas no teu berço. Não tiravas os teus olhinhos da bailarina… os teus olhinhos verdes, como os da tua mãe!


- E os teus! – disse, sorrindo.
- Vejo tanto dela em ti, Melody. Vocês são tão parecidas!
O tio Arthur sorriu ligeiramente, com os seus olhos a brilhar intensamente. Fixava, ora os meus olhos, ora a caixinha de música. Foi então que decidi perguntar:
- Hum, tio, o que aconteceu à caixa? Ela foi parar à igreja… como?
Ele baixou a cabeça, olhando, agora, para o tapete do chão da sala. Não tirava o seu sorriso da cara.
- Não é uma história muito bonita… foi num dia em que tu e o teu pai discutimos e… não interessa! O que interessa agora é que a caixa é tua agora! Agora podes ouvi-la sempre que quiseres, querida!
- Obrigada tio… vou guardá-la para sempre! – exclamei, abraçando o tio Arthur ternamente.


- Bem… - disse, enquanto se levantava do sofá – já é tarde e eu tenho de ir-me embora… amanhã acordo cedo.
Nesse momento o meu pai chegou à sala, limpando as mãos a um pano, mostrando que estivera a arrumar a loiça… ou apenas a disfarçar.
- Amanha vais dar uma arrumadela lá na Igreja? – perguntei, tentando arranjar motivo para o tio Arthur se levantar cedo, no dia seguinte.
- Não… aliás, não a vou dar tão depressa! Vou para a quinta do meu pai. Do teu avô! Vai-me fazer bem espairecer… esquecer algumas coisas que passei aqui em Fort Sim. Sabem – dirigiu-se a mim e ao pai – depois das más experiências, o stress que se vive… as tristezas que sentimos, aquela… nostalgia, faz-nos bem parar para pensar! E é exactamente o que eu vou fazer! Vou sair daqui de Fort Sim para arrumar as minhas ideias e preservar a sanidade que ainda me resta!


Rimo-nos, em conjunto. Aquelas palavras do tio Arthur fizeram-me pensar numa coisa… ninguém é de ferro. Por breves momentos da minha vida dizia para mim mesma que era capaz de superar tudo e todos que se opusessem à minha frente, de todos os obstáculos. Mas depois dei por mim deitada na cama a chorar desalmadamente. Uma pessoa mantém-se objectiva por muito tempo, fixando apenas o auge da sua vida, profissional ou económica, e por vezes esquece-se dos seus sentimentos, do que realmente deseja, dando com ela a deixar-se levar pelo ímpeto de angústia e tristeza que se trancaram no seu coração durante vários anos. Nós não podemos controlar os nossos sentimentos, embora às vezes achemos que podemos!
- … e por isso é que ele voltou para a Quinta… ele preserva-a imenso! – apenas ouvi o fim da breve conversa que o pai e o tio Arthur tiveram mesmo à porta de casa. Tinha-me distraído por completo – bem, agora vou mesmo – anunciou o tio Arthur, dirigindo-se novamente a mim e ao pai.


Dei-lhe um beijo de despedida, e de seguida um forte abraço. O pai acompanhou-o à porta, enquanto eu me dirigia à sala, olhando para a caixinha de música que segurava. Abri-a…

E a música não parava de tocar…de tilintar a cada nota musical, a cada soluço da sua bela melodia...

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Capítulo 105

***



Cheguei a casa encolhida pelo frio que se fazia sentir naquela tarde, acompanhado por um forte vento que anunciava uma tempestade. Mal entrei em casa pousei a minha mala no chão e fui ter com o pai, preparada para lhe contar que tinha enviado a página do seu diário ao tio Arthur. Ele tinha o direito de saber… afinal foi ele que a escreveu, e foi ele que sempre a conservou desde a morte da mãe.
Ele estava no quarto, a ler um livro. Olhei pela fresta da porta, e não pude deixar de reparar na sua tranquilidade. Há muito tempo que não o via assim, tranquilo, com os seus óculos postos, sentado na sua poltrona a ler um livro. Mas tive de interromper, batendo à porta.
- Entra filha! – exclamou, enquanto pousava o livro e os óculos na mesa de apoio mesmo ao lado da poltrona – Como correu a escola?
- Olá pai… bem, correu bem! Hum, pai… queria contar-te uma coisa.


- Diz, filha!
Quando me preparava para lhe explicar tudo, alguém tocou á campainha.
- Quem será? – indagou o pai.
Levantou-se da poltrona e desceu as escadas. A sua tranquilidade fez-me acreditar de que ele ainda não tinha dado por falta do papel, o que me deixou mais descansada.
Desci as escadas lentamente, enquanto observava o pai a ir até à porta. Espreitou pelo ralo desta e no instante a seguir a sua expressão mudou. Quando tirou o olho do ralo, olhou para mim com os sobrolhos franzidos, com a boca entreaberta. Abriu a porta, e partilhei o mesmo surpreendimento com o pai.
- Arthur?! – inquiriu o pai, enquanto o olhava fixamente.
- Olá! – saudou o tio Arthur, com uma expressão insegura que denotava arrependimento de estar ali, por ver as nossas caras impressionadas.
Não deixei de reparar no saco que o tio trazia. Era um saco de tamanho médio, já um pouco velho. Mas deixei-me logo de observações.
Para quebrar aquele silêncio que alimentava rapidamente um ambiente de extrema tensão, desci as escadas a correr e fui dar um beijinho ao tio.
- Tio! Que bom ver-te!
- Olá, Melody! – exclamou ele, enquanto me retribuía o beijo.
De seguida olhou para o meu pai, sorrindo ligeiramente. Este ainda não tirara a sua cara de espanto.
- Então? – disse, no meio dos dois, que estavam parados um em frente ao outro – Não se cumprimentam? Dêem lá um aperto de mão!
O tio Arthur estendeu a sua mão, ainda com um grande sorriso na cara. O pai, a grande custo, também ergueu a sua mão, dando os dois um aperto de mão.
- O que estás aqui a fazer? – Perguntou o pai, secamente.


O tio olhou para mim, sorrindo-me simpaticamente. Depois voltou a olhar para o pai, voltando à sua expressão ansiosa:
- Eu… queria falar contigo! Se puderes!
- Claro que pode! – Exclamei logo a seguir – Não é pai?
- Na verdade eu…
- Vês, tio? Ele pode! – Interrompi.
- É de extrema importância! Não me peças para adiar… porque não consigo! – Acrescentou o tio.


- Bem, eu vou fazer os trabalhos de casa. Até já!
Subi as escadas, e quando cheguei ao último degrau parei. Assim que ouvi o pedido do pai, para o tio Arthur se sentar no sofá, desci mais dois degraus e sentei-me nestes, para escutar a conversa. Já sabia qual era o assunto que o tio queria falar, mas não podia ficar no quarto sem ouvir nada.


O tio entrou na sala, olhando em redor, como que recordando os bons momentos que lá passou, a ver sessões de futebol com o pai, jogar às cartas, a falar com a minha mãe. E ele mal desconfiava que eu estava ali.
Sentou-se num dos sofás e aguardou que o pai se sentasse também. Quando este se sentou, perguntou:
- Então, o que queres falar comigo? – A sua antipatia estava-me a irritar solenemente.
- É sobre a morte da minha irmã!
- Passados dezoito anos ainda não tiraste o assunto da cabeça? – O pai soltou uma pequena gargalhada – Mas está descansado! A Melody já sabe de tudo! Não precisas de te preocupar mais…


- Não é disso por que vim aqui! Eu sei que a Melody já tomou conhecimento de tudo… eu sei.
- Como é que sabes?
O Tio Arthur não quis responder à pergunta, presumindo eu rapidamente uma resposta: o tio Arthur não podia dizer ao pai que eu tinha mergulhado num poço que me levou ao meu passado. Tirou do seu bolso a carta que eu lhe mandei. Abriu-a, tirando de lá as duas folhas. Colocou a primeira, a carta que eu escrevera, e pô-la em cima da mesa de centro.
O pai pegou na carta, mas não a leu, aguardando por uma explicação mais específica por parte do tio.
- A Melody enviou-me esta carta, e em anexo, como podes ler na carta, ela colocou isto – tirou do envelope outra carta, perfeitamente dobrada, a página do diário do pai.
Dessa vez ele fez questão de abrir a página.
- A Melody fez questão de me enviar isto, para eu saber de toda a verdade. Não a que todos já sabem, mas o segredo que guardaste contigo durante dezoito anos: a razão por que te levou a esconder a morte da minha irmã.


O pai pegou na página do seu diário lentamente, com os olhos arregalados, sem dizer uma única palavra.
- Ela enviou-te isto?
- Sim. Ela queria que eu soubesse. Queria que tu e eu fizéssemos as pazes! George… eu devo-te um pedido de desculpas! Eu sei que qualquer um reagiria assim, também tens de compreender que eu não sabia de nada naquela altura, e que estava a agir de cabeça quente, mas não podia fazer nada…
- E eu? Podia?
- Não…
- Todos estes anos estive encarregue de uma missão, proteger a Melody! A minha esposa pediu-mo! O que poderia eu fazer? Quebrar a promessa que fiz, dias antes da sua morte? Arthur, era a única coisa que me fazia levantar de manhã! Era a única coisa que me fazia ter forças para encarar o dia!


- Eu sei! É por isso que vim aqui! Para te pedir desculpa! Eu sei que não agi da melhor forma, e que não te demonstrei o mínimo de apoio naquela altura tão difícil! Quero que voltemos a tratar-nos, não por cunhados, mas sim por amigos! Grandes amigos! Eu sei que errei!
- Não sei… amizade não foi a coisa que me demonstraste nestes últimos anos…


- Eu sei! Desculpa-me! Estou arrependido!
Passados uns instantes o pai levantou-se do sofá. Presumi logo que ele iria utilizar as escadas, por isso levantei-me rapidamente, fui para o quarto e sentei-me na cama. Tirei da minha gaveta dois livros e abri-os numa página qualquer, fingindo que estava a fazer os trabalhos de casa.
Mas não foi preciso encenar nada, porque o pai me chamou mesmo lá de baixo das escadas.
- Melody! Chega aqui!
Levantei-me da cama e desci as escadas. A cara do pai continuava apática.
- Sim, pai?
E nesse instante, abriu um ligeiro sorriso e olhou para o tio Arthur.
- Prepara a mesa, o Arthur vai cá jantar!