Capítulo 85

No dia seguinte, sentia-me ainda mais disposta para começar o dia. Finalmente estava tudo bem! Nada me podia atormentar, naquele, e nos futuros, dias. A minha mãe permanecia sempre no meu coração, não tinha mais visões, e, o mais importante de tudo, estava bem com o meu pai. Não suportava mais a ideia de permanecer longe dele, por mais que o tentasse esconder.
- Bom dia, pai! – Saudei, enquanto entrava na cozinha.
- Bom dia filha! – Exclamou o pai, enquanto fechava o seu jornal e inclinava a sua cara para eu lhe dar um beijo.
- Não vais trabalhar?
- Não… estou de folga! Aproveito e pago umas contas…
- Estás sempre preocupado com algo! Devias tirar este dia para descansar!
- Eu não preciso de descansar. Agora come, e vai para a escola! Já está quase na hora!
Peguei numa maçã que estava na fruteira e saí de casa de rompante, ansiosa por contar tudo ao Jake.
Tudo me parecia diferente naquela manhã. Aquela brisa gelada que me fustigava a face era mais perceptível, o cheiro outuniço das árvores inundava-me as narinas ainda com mais intensidade e o cantarolar dos pássaros mais audível.
Apetecia-me cantar os quatro ventos o quanto me sentia feliz. A única coisa que me apetecia era viver a vida com um sorriso nos lábios. Havia em mim uma força de vontade que nunca, nem mesmo antes de descobrir a realidade da minha vida, tinha sentido.


Assim que cheguei à escola e vi o Jake, instintivamente, abracei-o com quanta força tinha. Pelos seus movimentos lentos, apercebi-me que tinha sido completamente apanhado de surpresa.
- Tem calma, ainda me esganas! - Disse o Jake, rindo-se com prazer. - Porque é que estas tão feliz? É por estares aqui comigo?
- Eh, que engraçadinho! Não! É porque fiz as pazes com o meu pai!


- Estás a falar a sério?
- Sim!
- Mas isso é muito bom, Mel! Agora está tudo a resolver de uma melhor forma não é?
- Melhor é impossível! - Disse, aproximando-me dele para o beijar.


Estava tão feliz que chegava ao ponto de me assustar com isso. O meu pai e eu vivíamos em perfeita harmonia, como uma verdadeira família, por mais pequena que fosse. A minha avó e eu estávamos mais unidas do que nunca. E a minha relação com o Jake estava ainda mais brilhante do que uma noite quente de Verão, daquelas em que só me apetece saborear um batido de morango fresco, deitada na relva do meu jardim.
- Gosto de te ver assim! - Disse ele, sorrindo-me carinhosamente.
E eu "gosto de me sentir assim", pensei eu, enquanto sorria pela enésima vez nesse dia.
- Há notícias da Sarah? – Perguntei, fazendo-me de desentendida.
- Não… nunca mais apareceu à escola. Pudera… depois do que aconteceu.


- Pois… confesso que, independentemente de tudo o que ela me fez, eu sinto um pouco de pena dela.
Nesse momento, o olhar do Jake desviou-se para trás de mim, provavelmente para uma pessoa. A sua cara intrigada levou-me a olhar para trás também.
- Quem é ela? Nunca a vi aqui antes! – Exclamou o Jake, atónito.
- Nem eu…
Ela transportava uma enorme pilha de livros, juntamente com a sua mochila e uma malinha de pequeno porte, cor-de-rosa com unicórnios desenhados por fora. Portava um vestido também cor-de-rosa, simples, e envelhecido. O seu cabeço era baço e curto, com um laço a enfeitar. A sua cara trancada mostrava, nitidamente, que era uma rapariga tímida, olhando para as outras pessoas com receio e medo, empurrando os seus óculos redondos para junto dos seus olhos vulgarmente castanhos e esbugalhados.


- Faz-me lembrar… bem, tu sabes… - Disse o Jake, enquanto permanecia a olhar para a rapariga.
- Vamos falar-lhe? Podemos conhecê-la melhor.
- Se quiseres vai tu, estou atrasado para a aula, tenho de ir.
- Mas Jake! Tu és da minha turma! E vamos ter um furo agora! Lembras-te? Avisaram-nos que a Professora de Biologia estava de baixa!
- Sim, tens razão! Mas eu tenho de… ir à biblioteca requisitar um livro!
- Desde quando é que requisitas livros?
- Desde sempre! – Afirmou seguramente, fazendo um roído de indignação.
- Pois, pois… vai lá então. Eu vou falar-lhe!
Aproximei-me da aluna nova, enquanto ia mantendo um sorriso de orelha a orelha. Esta, quando me avistou, levantou-se e arrumou os seus livros dentro da sua mala, preparando-se para ir embora.


- Hei! Espera! Eu só queria… - Mas tinha sido tarde demais. Tinha-se ido embora mesmo antes de eu pronunciar um “Olá”.

* * *

Estava extremamente triste! Não ia haver aula! A escola devia ter professores “suplentes” para leccionarem em caso de ausência de outros professores, mas isso nunca irá acontecer, pelo menos enquanto eu não for Ministro da Educação.


Dirigi-me à biblioteca e, como sempre, saudei a gentil e bonita bibliotecária, enquanto ela executava eficientemente o seu trabalho. Depois, dirigi-me para o quarto corredor, secção 32, indo buscar um livro que tinha visto na Inter-Rede. Achei-o interessante e pensei que o poderia requisitar.
Quando cheguei à secção 32, já podia avistar o livro, com a sua capa dourada e espessa, e o seu exagerado número de páginas, que, segundo um rápido cálculo que fiz, eram novecentas e trinta, tal como eu gostava. Encantado pelo brilho da capa, distraí-me e fui contra uma rapariga, que transportava dois livros de Geologia.
- Peço imensa desculpa! – Lamentei, enquanto me preparava para a ajudar.
- Não faz mal… eu… - Olhou para mim, e eu para ela, e não pude deixar de reparar nos seus lindos olhos castanhos, coroados por longas pestanas pretas. – Eu… - Continuou – Eu é que não vi o caminho. Desculpa-me!


- N-não faz mal!
Acenou-me com a cabeça, como uma despedida, e prosseguiu o seu caminho para a secção 34. Nunca a tinha visto na escola antes… seria uma nova aluna?


Capítulo 84

* * *

Os olhos de Miss Béatriss ficaram inundados de lágrimas, enquanto olhava para mim de alto a baixo, comentando o quanto eu estava crescida. Não levou muito tempo até eu chorar também, abraçando-a ternamente. Naquele momento, esqueci-me de todas as recordações más que ela me proporcionou, porque, apesar dessas más recordações, ela acompanhou-me durante dez anos, e, sem ela, podia estar na rua a morrer à fome, ao frio. Estava-lhe muito agradecida por isso.
Encaminhou-me até à cozinha, onde o cheiro de gizado surpresa se intensificava ainda mais, o que não evitou a onda de tristeza que me percorreu o coração naquele momento. Estava a reviver todas as sensações e momentos passados naquele Orfanato.
- Senta-te! – Pediu – Queres um chá?
- Sim, se faz favor – Respondi, sentando-me numa das cadeiras de madeira envelhecida.
Miss Béatrice levou o bule de chá á mesa, juntamente com duas chávenas de porcelana. Sentou-se.
- Nem acredito… Tu cresceste imenso, e não só na estatura. Na vida! Tu és famosa!


- Já não… - Neguei, dando um pequeno gole de chá.
- Desculpa, não percebi muito bem.
- Já não sou famosa, Miss Béatrice…
- Por favor… trata-me por… Béatrice…
- Desculpe, é o hábito – disse, sorrindo – Como eu ia a dizer… já não sou famosa.
- Porquê?
- Não ouviu as notícias? Descobriram que eu sou órfã. Não levou muito tempo até essa notícia percorrer o mundo inteiro. Agora, sempre que passo na rua, não consigo passar de despercebida, sem que algum ex-fã me aponte com o dedo, boquiaberto, com um jornal na mão, no qual está, bem legível, na primeira página, o título da grande reportagem sobre a “Farsa de Sarah Mello”.


- Lamento muito, Sarah. Não sabia que tinhas problemas em assumir que eras órfã…
- Não tenho! Mas, pensei que pudesse arranjar-me problemas e, portanto, eu encobri isto.
Béatrice empoleirou-me ligeiramente na mesa, com os olhos a brilharem:
- E… vais deixar de seguir o teu sonho… só porque descobriram o teu segredo…?
- Mas qual sonho? A minha vida sempre foi tão fácil, sem luta pelos sonhos. Bastava estalar os dedos e eu tinha tudo… ou quase tudo. Os meus pais não apareciam à minha frente sempre que estalava os dedos.


- Tens saudades deles?
- Muitas… É indescritível…
- Mas, Sarah… - Prosseguiu – Tu não vais deixar de fazer o que gostas só por terem descoberto o teu segredo… não faz sentido! Por que não continuas a tua carreira?
- Porque não quero, Béatrice. Eu aprendi muito com isto… mesmo muito. E cheguei à conclusão que fui uma fútil e mimada. Eu mereço isto. Estou a pagar por tudo o que fiz…
Béatrice olhou para mim, com um olhar que reflectia um misto de tristeza e pena. Nunca a tinha visto assim.
- Então… o que vais fazer agora?
- Seguir em frente… dentro dos possíveis. Vou recompensar todos pela pessoa horrível que fui… Ah, já me esquecia – Tirei da minha mala, um cheque – Isto é o mínimo que posso fazer por este orfanato… por si!


- Não! Eu não posso aceitar isto!
- Aceite! Aceite! Eu sei que está a precisar… que estas crianças estão a precisar… eu sei disso, porque eu também já fui uma delas. Aceite!
Com isto, dei-lhe um suave beijo na testa, enquanto não conseguia conter as lágrimas de felicidade que me submergiam por completo.

* * *

- E pronto… chegámos! – Disse o meu pai, com uma enorme satisfação, enquanto estacionava o carro na garagem.
Mal saí do carro, olhei para o exterior da casa. Um suave arrepio percorreu-me o corpo, enquanto um sorriso se desenhou na minha face. Sentia-me excepcionalmente bem naquele momento.


O pai convidou-me a entrar, enquanto carregava as minhas malas, e o arrepio intensificou-se ainda mais, juntamente com uma enorme onda de recordações que me inundou a mente.
Quando entrei no meu quarto, foi como se não tivesse lá estado durante três meses. Parecia-me diferente, comparado com o quarto que tinha na casa da avó. Não era por ser mais espaçoso, mais iluminado ou com um cheiro menos intenso a naftalina. Era o facto de lá ter dormido nos últimos dezoito anos.


Mesmo sem querer, tinha gravado naquele quarto todas as minhas memórias e recordações. Tanto as tristes, como as felizes... Havia um percurso que eu deixara nesse quarto. Um percurso que agora relembrava lentamente, enquanto abria as malas que o meu pai trouxera. Era bom voltar a casa. Tinha adorado estar com a minha avó, sentir o cheiro das tartes de maçã e dos biscoitos caseiros que ela fazia para o pequeno-almoço, ou das sobremesas cheias de chantilly que ia lamber ao frigorífico às escondidas dela. Mas a minha casa, o meu lar e a minha vida, era com o meu pai.


Enquanto arrumava as malas, não pude deixar de reparar nas fotos rasgadas ao meio que tinha em cima da secretária. De um lado da foto estava eu, do outro a Cassandra. Lembrei-me do dia em que ela me viu, e me veio abraçar emocionada. E se ela estivesse disposta a fazer as pazes? Será que a nossa amizade regressaria ao que era? Perdida nestes pensamentos, peguei na moldura da mãe, que guardara com todo o cuidado e pousei-a na mesa-de-cabeceira, onde sempre estivera. Senti mais um arrepio. Agora seria diferente. Quando acordasse, não veria a imagem de uma mãe ausente e desinteressada. Ia ver a imagem de uma mãe que faleceu para me deixar nascer. Que deu a sua vida pela minha. Que me amava incondicionalmente. E, antes de ir ter com o meu pai à sala, suspirei de alegria e visualizei mentalmente a imagem do meu quarto. Agora, finalmente, tudo estava bem.


Capítulo 83



* * *

Parei em frente ao Nº 2 da Avenida Principal Mathew Kauffman. Naquele momento, mais do que nunca, senti o nervosismo a apertar-me o coração. Aquele vento gelado, típico da meia estação, fustigava-me a cara. Não conseguia parar de pensar no que os jornais e revistas diziam a meu respeito, mas todas essas preocupações iam dissipando-se gradualmente no meu coração. Tinha coisas mais importantes a fazer.


O Orfanato continuava aberto, ao contrário do que o pavão… quer dizer… do que a Melody, disse, no dia em que descobriram tudo. Ao fim deste tempo todo, posso concluir que ela me ajudou bastante. Não só me fez abrir os olhos, como também me fez perceber que somos todos iguais, precisando igualmente de ajuda mútua. Ninguém tem que se diferenciar por usar roupas fora de moda, ou apenas por não ter charme ou atitude. Somos todos seres humanos, e foi preciso acontecer o que aconteceu para eu perceber isso. Apesar das más recordações que retinha daquele Orfanato, as saudades do mesmo eram quase insaciáveis.


Já conseguia ouvir os risos infantis de todas aquelas crianças sem progenitores. Quase que conseguia sentir o cheiro daquele guisado surpresa que Miss Béatrice preparava todas as Quartas-Feiras à noite. Quase que sentia a textura farpada do meu urso de peluche, e da relva acabada de cortar logo pela manhã, quando ia para a escola primária. Sentia a mão áspera de Miss Béatrice, quando me pegava ao colo, para me levar á cama. Sentia o som da chuva a bater no vidro do meu quarto. Foi só nessa altura que eu me apercebi o quanto eu fui estúpida, acreditando que a fama e o dinheiro significavam tudo para a minha vida. O amor, a amizade… o afecto… tudo isso conta, tudo isso nos complementa, apenas eu não percebi isso.


Bati à porta daquela casa já envelhecida pelo tempo. Notava nitidamente as diferenças, mas por dentro, tudo continuava igual.


Abriram a porta. Por momentos não vi ninguém, só quando olhei para baixo é que vi uma criança, com uma boneca de porcelana na sua mãozinha.
- Olá! – Saudei, agachando-me. – Posso falar com a Miss Béatrice?
A criança não respondeu, mantendo a sua cara apática e vítrea. Dirigiu-se à cozinha, onde chamou Miss Béatrice. Esta, saiu de rompante da divisão, e encaminhou-se para o hall de entrada.
- Boa tarde, em que posso ser útil? – Perguntou, asperamente, sem me reconhecer. – A hora das visitas acabou!
- Não… não vim visitar ninguém. Quer dizer… Miss Béatrice, não se lembra de mim?
- Não… - Negou, olhando-me de alto a baixo.
- Sou a Sarah! Sarah, filha adoptiva dos senhores Mello!
Rapidamente, a sua expressão transformou-se num misto de alegria e tristeza, sem serem preciso palavras para me pedir para entrar.
Entrei, o chão de madeira velha a chiar por baixo dos meus pés. Todas as recordações mergulharam na minha mente, tão rapidamente, que facilmente esqueci tudo o que tinha acontecido lá fora.

* * *

- Melody! Fico tão feliz por decidires voltar para casa do teu pai! – A avó estava radiante, mesmo ciente de que aquele momento significava uma longa e difícil despedida.
- É… já está na altura de acabar com isto, avó. Finalmente vou poder ser feliz, concretizando o desejo da mãe. Acho que tomei a decisão certa…
- Se tomaste, querida! Estou tão orgulhosa de ti! – Felicitou-me, abraçando-me ternamente.


Vieram-me as lágrimas aos olhos, de pensar nos momentos que passei com ela naquela casa isolada. O som áspero do mar, os pratos deliciosos, noites a ver os Reallity Shows preferidos da minha avó, e, principalmente, a sua carinhosa hospitalidade. Sentia-me triste por deixar isso tudo, mas sabia que era por uma boa causa.


As malas já estavam feitas, pousadas no hall de entrada.
- Se precisares de alguma coisa, não hesites em telefonar-me, querida! – Exclamou a avó, vendo-me a caminhar para a entrada. – Não te esqueças!
Virei-me para trás e, pegando na medalha do colar da minha mãe, disse, com uma voz terna e reduzida.
- Não avó… não me esqueço…
- Dá cá um abraço, querida! Vou ter saudades!
- Avó! Nós vivemos na mesma cidade! Podemos visitar-nos uma à outra!
- Sim… sim! Tens razão… que parvoíce. Mas é difícil!
- Eu sei avó… para mim também é difícil! Mas um dia destes, vem a nossa casa e fazes aqueles cozinhados que só tu sabes! O pai agradecia-te! E muito!
Soltou um suave riso, limpando algumas lágrimas derramadas.
- Então… Adeus, Melody!
- Até logo! Isto não é um adeus!


- Sim, pois é! Até logo, querida!
Com isto, peguei nas minhas malas que, ao contrário do dia em que tinha chegado a casa da avó, eram muitas mais, pelos álbuns de fotografias e roupa que me tinha oferecido.
Entrei no carro, enquanto o pai punha as minhas malas na bagagem, e de seguida, dirigimo-nos para casa… para a nossa casa…

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Olá caros leitores! ;D
Fica oficialmente anunciada a RECTA FINAL da Melody! A partir deste capítulo, iremos caminhar para o fim desta história brilhante!
Não percam! Pois muitas mais emoções estão para vir nesta contagem decrescente!

Capítulo 82

* * *



A Melody tinha razão, sobre a temperatura ter descido radicalmente. Estava a morrer de frio e ainda estava no campo de Rugby, a treinar com o Michael, embora não me conseguisse mexer muito facilmente, tinha a pele dormente.
- Michael, vamos parar… Estou quase a congelar, e já aquecemos!
- Então mexe-te mais, não? Mano, o campeonato começa daqui a duas semanas e ainda não treinámos quase nada!


- Nós jogamos bem, independentemente de treinar ou não! Somos Os Lamas, lembras-te?
- Ora, ninguém ganha um campeonato só com fé! Anda treinar!
- Mais logo, pode ser? Estou cheio de frio, e acho que vai chover! Anda…
Ao fim de algum tempo, o Michael, com um arrepio, concordou em retirarmo-nos para os balneários, pelo menos até os outros chegarem para treinarmos arduamente.


Já fazia algum tempo que não tinha uma longa conversa com o meu melhor amigo. Com a chegada ao Secundário, e com a fundação dos Lamas, havia pouco tempo para momentos entre amigos. Falámos um pouco, mas não tardou até ele dar pela minha “ausência psicológica”. E já se previa qual era o seu argumento:
- É a Melody, não é?
- Oh, Michael, deixa-te disso…
- Eu não te estou a censurar! Até acho ela uma miúda porreira… Finalmente escolheste bem as tuas namoradas! Estás de parabéns! – Congratulou, ironicamente, enquanto se ria às gargalhadas.


- Tens cá uma piada!
- Pronto, já cá não está quem falou! Mas olha… - pigarreou – E essa Sarah Mello? No início do ano só te via agarrado a ela…
- Ela é que estava agarrada a mim… E, confesso, que cheguei a ter um fraco por ela, mas dissipou-se por completo, quando comecei a falar melhor com a Melody… Ela tem tudo o que eu gosto numa rapariga… Beleza, inteligência… Nunca senti algo assim, por uma rapariga…
- E eu nunca te vi tão piroso! – Notou a minha cara furiosa, e lamentou – Pronto, desculpa… mas tem graça. Mas agora… começo a ter um pouco de pena da Sarah… Ela nunca mais veio à escola! E não se fala de outra coisa na televisão, nos jornais, na rádio… até nos corredores da escola! Ela deve estar mesmo abalada…


- A Sarah teve o que merecia. Ela mentiu este tempo todo. Se há de alguém que eu deva sentir pena, é da Melody. Ela tem problemas a sério. O pai mentiu-lhe, nunca conheceu a sua mãe.
- Pois… Coitada. Olha, aí vêm eles. Agora, põe-te a tremelicar de frio! Vamos tratar de um bom aquecimento…!
- Hei! Aqui o capitão sou eu!



* * *

Eu e o pai fomos dar um passeio ao parque central. Nem podia acreditar que já tinha feito as pazes com ele. Na verdade, foi ele que as fez comigo. Fui horrível para ele, e sentia-me mal por isso, mesmo quando me dizia para não me preocupar e meter tudo para trás das costas, o que me levou a tocar outra vez no assunto.
- Só de pensar de como te falei naquela tarde, dá-me vontade de bater em mim própria.
- Não digas disparates, Melody! Tu não sabias tudo, era por isso que estavas tão triste…
- Por isso mesmo… não sabia toda a história, e precipitei-me! Eu devia ter-te ouvido! Devia ter ouvido a verdadeira história.


- Não penses mais nisso! – Exclamou o pai, sentando-se num banco à beira do rio.
Sentei-me com ele. Há muito tempo que não contemplava a paisagem de Fort Sim, com o meu pai, e isso fez-me ver o quanto senti a sua falta, mesmo dizendo que o odiava. Ele é meu pai, e eu amo-o!
Houve um pouco de silêncio, por parte de ambos.
A corrente frenética do rio reflectia cores tremeluzentes nas paredes do cais. O fluxo dessa corrente quase que quebrava aquele silêncio, quando eu falei:
- Não culpes a avó… Por… tu sabes… ter-me acolhido em sua casa e não te ter dito nada. Eu pedi-lhe, e ela apenas queria acolher-me naquele momento tão difícil.
- Claro que não. Eu compreendo perfeitamente.


- A sério?
- Claro, filha! – Disse o pai, carinhosamente - Ela gosta muito de ti, é normal que tenha querido atender ao teu pedido. Nem consigo imaginar de como estarias tão triste nesse dia.
- Então e tu? Eu estava tão preocupada contigo. Tinha medo que pudesses fazer alguma loucura, pela tua tristeza.
- Sabes… Quando um pai está preocupado com a filha, deixa de pensar nele próprio. Foi o que me aconteceu. Não queria pensar em mim, apenas em ti!
Sorri-lhe. Aquelas palavras, vindas dele, eram tão reconfortantes, que me deixavam segura e confiante.
- Quando voltas para casa? – Perguntou, os seus olhos a brilharem intensamente.
- Não vai ser fácil… a nossa casa vai-me trazer muitas recordações… mas eu vou voltar! Tenho saudades dos teus cozinhados à “chefe”.
- A sério? – Indagou, sorrindo – Fico feliz por saberes que gostas dos cozinhados torrados do chef George! E fico ainda mais feliz, por tu decidires voltar para casa! És a melhor filha que um pai pode ter…
- E tu és o melhor pai que uma filha pode ter…


Com isto, abraçámo-nos, o pôr-do-sol a incidir sobre a impiedosa torrente do rio nacarado, ressoando asperamente por todo o vale.


Capítulo 81



Fechei o papel, e deixei-me cair no sofá, atordoada e sem palavras para o que tinha acabado de ler. Sentia-me uma idiota. Naquele momento, se havia alguém que era covarde, era eu! Senti-me uma insensível, cruel por não ter percebido antes. Tudo aquilo que o pai fez, foi pela minha mãe. Foi a pedido dela que ele me mentiu, embora o fizesse contra a vontade, e eu não percebi isso!
Chorei, chorei, de punhos cerrados, mantendo o papel seguro na minha mão. Nem queria acreditar no que tinha acabado de descobrir. O meu pai não teve culpa nenhuma, foi a minha mãe que lhe pediu. Mas também não conseguia estar chateada com a minha mãe… afinal, ela estava prestes a morrer, e queria certificar-se de que eu tinha uma vida sem sofrimento, e promissora.
Ele devia estar deprimido, abalado… triste, tudo por minha causa, que não quis saber do motivo que o levou a esconder-me a morte da minha mãe. Ele usou esse segredo como uma imortalização do seu amor com a mãe, mantendo-o bem guardado no seu coração.


* * *

Parei o carro no parque de estacionamento mais próximo, ficando de frente para o local que eu tinha esperanças que guardasse a página do meu diário. Tremia por todos os lados. E se alguém tivesse lido o papel? Como iria eu confrontá-los?
Toquei à campainha.

* * *

Nesse instante, alguém tocou à campainha.
- Eu vou lá, avó! – Disse, enquanto me encaminhava para a porta, limpando as minhas lágrimas, o papel bem seguro nas minhas mãos.
Abri a porta, e quase que me recusei a acreditar.



Nesse momento, nem sabia se havia de chorar, de gritar ou de simplesmente abraçá-lo infinitamente. Era o meu pai!
- Melody! – Exclamou.
O seu olhar desviou-se para a minha mão, que agarrava o papel. Aí, a sua expressão mudou rapidamente, enquanto olhava, ora para o papel, ora para os meus olhos, dos quais já brotavam lágrimas, ou de alegria, ou de emoção.

* * *

Estava diante da minha filha! Ela estava em casa da avó dela!
Pelos vistos, tinha sido tarde demais para recuperar aquele papel. A Melody muito provavelmente já o tinha lido, e descoberto tudo, embora esse facto pouco, ou nada, me importasse, comparado com a euforia que estava a sentir por apreciar a sua beleza, outra vez, que, naquele momento, se mostrava mais luminosa do que nunca.

* * *

- Pai… - Murmurei. – Pai…
Nesse momento, a avó saiu disparada da cozinha, limpando as mãos a um pano velho.


- Quem é, Melody? – Ao dizer aquilo, estacou, ao ver-me abraçada ao meu pai.
Abracei-o com todas as minhas forças, quase me atrevia a dizer que podia estar ali, a abraçá-lo, para sempre.


- Desculpa, pai! Desculpa! – Lamentei, enquanto chorava desalmadamente, não largando, nem ele, nem o papel.
- Mas o que se passa aqui? – Perguntou a minha avó, com um misto de indignação e emoção.
O pai caminhou em direcção a avó, sorrindo-lhe meticulosamente, e dizendo:
- Lydia, acho que lhe devo uma explicação. Não vale a pena estar a esconder mais isto. Acho que chegou a altura de lhe contar tudo.
- Essa altura já tinha chegado há que tempos, George.


- Eu sei… - Olhou para mim, com os olhos a brilharem. – Mas fui um covarde… e não tive coragem de dizer.
Pediu-me o papel, dando-me apenas um sinal, que eu entendi mecanicamente, e rapidamente o dei para as suas mãos.
- Leia isto… - Pediu, dirigindo-se de novo para a avó.
Sentamo-nos todos no sofá, aguardando que a avó acabasse de ler o papel. Não tardou muito até lhe brotarem dezenas de lágrimas dos olhos e olhar para o meu pai, com um misto de gratidão e tristeza.
- Foi a minha filha que to pediu? – Indagou, não parando de olhar para o papel.
- Foi… - Respondeu o pai, olhando para mim e para a avó. – Eu sei que vocês, como família da Melody, deviam ter sabido primeiro do que ninguém, mas ela pediu-me que guardasse este segredo com a minha vida, pois podia haver alguém que não concordasse, e que, mais tarde, dissesse à Melody, júnior – olhou para mim, com um ligeiro sorriso - toda a verdade, e a sua filha não queria isso.


- Agora… - Prosseguiu a avó. – Agora, eu compreendo-te, George! A Melody confiou em ti, e tu cumpriste com a tua palavra… Mas… a minha filha estava ciente que, no futuro, seria impossível esconder mais esta mentira, não estava?
- Penso que sim… foi a primeira coisa que pensei quando ouvi o seu pedido, e que me suscitou logo várias dúvidas. Mas a Melody pediu-me para não me preocupar com o futuro, apenas com o presente, e assim o fiz. Tenho tantas saudades dela! – Começou a chorar, levando as mãos à cara.


- Todos nós temos, George. – Disse a avó, também começando a chorar. – Ela era uma jóia de mulher. Bondosa, divertida, responsável. Ela estará sempre nos nossos corações… sempre

Capítulo 80



Abri o papel, e um misto de nervosismo e entusiasmo invadiu-me o coração. Era uma sensação inexplicável que se intensificava de uma fora incessável. No papel, estava uma letra um pouco rabiscada, mas que eu conseguia ler perfeitamente. Comecei a ler.

“26 De Dezembro de 1992

Hoje discuti, pela primeira vez, com o Arthur. Nem sei a razão porque fui ter com ele àquele escritório. Estou cansado de discussões e insinuações sobre o facto de eu não querer dizer à minha filha que a Melody morreu. Jamais alguém compreenderá a razão que me levou a fazê-lo… jamais. De todas as dificuldades que já enfrentei, nenhuma foi tão difícil como a que estou a enfrentar agora. A tristeza… o buraco negro que se instalou no meu coração deixa-me sem forças para viver. Prometi a mim mesmo que prosseguia com a minha vida, junto da minha filha, mas essa promessa está prestes a romper-se. Não consigo suportar esta terrível e, quase inaceitável, perda. Toda esta tristeza reflecte-se no que eu faço no meu dia-a-dia. Não faço as minhas coisas com tanta disposição e vontade que fazia anteriormente. Mas o que me deixa ainda mais abalado no meio disto tudo, é o pouco, ou nenhum, apoio que recebi por parte da família da Melody.


A Lydia, a mãe da Melody, olha-me desdenhosamente, e não aprova esta minha decisão, de não contar nada à minha filha. O Arthur, quase que já nem me atrevo a dirigir-lhe a palavra. O seu olhar, não desdenhoso, mas furioso, dá a entender, de forma perfeitamente nítida, que também não aprova a minha decisão. Ninguém aprova, e, confesso, que se eu não soubesse o Porquê desta decisão, que também não aprovava. Mas… apesar de tudo o que me dizem, estou de consciência limpa e leve.
Vou concretizar o desejo da Melody, e dar à nossa filha o que a vida tem de melhor. Vou vê-la crescer, ensiná-la a andar, a falar... Acompanhá-la nos estudos, e vê-la evoluir. Quando digo que não estou preocupado com o futuro, refiro-me ao momento, que eu não duvido que chegue, em que a minha filha descubra que eu lhe menti. Mas não há nada que eu anseie mais, do que vê-la crescer, e esse, é o futuro que eu mais quero.
Os meus amigos, colegas de trabalho, e até a minha família, não aprovam a minha decisão, que, na verdade, nem é bem minha.


Tudo começou na noite de 19 de Outubro, dois meses antes de a minha filha nascer. A Melody começou a sentir-se muito indisposta e tonta. Vomitou a noite inteira, e só se sentia razoavelmente melhor quando se deitava. Comecei a preocupar-me, mas ela dizia-me sempre que era normal da gravidez, e tentava mostrar-me uma cara bem-disposta e despreocupada, mas eu sabia que por dentro, o seu medo era mais intenso do que qualquer coisa. Passaram-se semanas e semanas e a Melody continuava constantemente maldisposta, até que a levei ao médico, que disse que o acidente recentemente acontecido, o atropelamento, tinha deixado marcas negativas na sua gravidez, e que, a partir daquele dia, iria ser considerada uma gravidez de risco. Contudo, a Melody negou por completo, e afirmou que se sentia bem e que aquele atropelamento não passava de uma pequena pancada, que apenas mostrou os seus sintomas de uma forma passageira. Eu e o Arthur estávamos extremamente preocupados, mas a felicidade e ansiedade da Melody, pelo dia do parto estar para breve, deixava-nos mais descansados, e éramos forçados a acreditar que aquilo não passava de um dos complexos sintomas de gravidez. Até que subitamente, a Melody melhorou, o que me deixou muito aliviado.


Passaram-se dias, e nem um sinal de indisposição ou tontura, até que, gradualmente, comecei a esquecer o que tinha acontecido. A sua alegria de viver, dava-me ainda mais vontade de a beijar e abraçar. Iríamos construir uma família nossa, uma família perfeita, feliz e em harmonia. Nada me punha triste ou abalado, naquela fase, apenas conseguia pensar, tal como a Melody, no dia em que a nossa filha ia nascer. Compramos-lhe roupa, mobiliário, brinquedos. Fizemos obras na nossa casa, o que mudou por completo as nossas vidas. Mas um mês depois, a Melody teve uma recaída, que a deixou ainda mais abalada e sem forças. Foi uma recaída ainda mais intensa do que a anterior, e a Melody começou a não poder estar de pé mais do que cinco minutos, as tonturas eram frequentes, e os vómitos também. Não obstante, ela continuava feliz e satisfeita com a vida. Falava com a minha filha constantemente, afirmando que o dia do seu nascimento seria o mais feliz da sua vida, e que estava ansiosa por a ter nos seus braços. Mas ela já sabia… já estava ciente do seu triste destino. Estava ciente que não a poderia ver, não a poderia ter a seus braços, nem sequer ouvir o seu choro.
E foi aí, que, um dia, a minha vida deu uma volta de trezentos e sessenta graus.”

* * *


Não podia acreditar que tinha perdido o papel. Andava com ele no bolso de trás das calças há 18 anos. Tinha-se tornado uma rotina tirar o papel das calças quando estas iam a lavar e pô-lo de manhã no bolso de trás das que ia usar. Nunca o esquecera antes. Saí apressadamente de casa, com medo de ter perdido o papel definitivamente. Sentia-me ansioso. Parecia que tinha milhares de borboletas na barriga, e até respirava com rapidez. Mal entrei no carro, arranquei, ignorando o tiquetaque que o carro fazia quando não punha o cinto. O que eu queria era chegar a casa da avó da Melody rapidamente. Talvez ainda houvesse uma hipótese, por muito remota que fosse, de reaver a pagina do meu diário.


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“A Melody veio ter comigo, com um olhar terno e brilhante, e disse-me, infinitamente, que me amava, e que eu tinha sido a melhor coisa que lhe tinha acontecido na vida. As lágrimas brotavam-lhe dos olhos como se fossem riachos e abraçava-me fortemente.
A Melody já sabia que ia morrer, embora eu o negasse constantemente. Ela enfrentava a morte mais corajosamente do que qualquer outra mulher. E foi por isso, que ela me encarregou desta missão. Eu tenho uma missão! Uma missão que imortalizou o nosso amor… Proteger a minha filha. A última coisa que a minha esposa desejava, era que a sua filha viesse ao mundo para sofrer. Ela recusava-se a crer que a sua filha fosse confrontada com uma verdade tão dolorosa como aquela.
Foi por isso que ela me pediu que eu tomasse conta da minha filha, servisse de um pai e de uma mãe e, acima de tudo, encobrisse a sua morte. Ela insistiu, quase que implorou, embora eu, apesar de recusar a ideia de ela morrer, discordasse totalmente com aquele pedido, o que desencadeou numa discussão sem fim.


Até que, no dia do nascimento da minha filha, tive de encarar aquele pedido da minha amada, como uma missão, que levei avante, e fui contra tudo e todos, sem revelar o porquê da mentira, a pedido da minha mulher. Mantenho este segredo comigo, até onde a vida me levar… “