Capítulo 73

***

Depois de uma torturante troça por parte da turma por eu e o Jake não conseguirmos resolver o exercício feito pela professora, saí de rompante da sala quando deu o toque de saída e dirigi-me para o pátio da entrada da escola.
- Tu ficas? – Perguntou o Jake, colocando o capacete e montando na sua mota.
- Sim, fico. A esta hora já o meu pai deve estar em casa da minha avó. Almoço por cá…
- Podes almoçar em minha casa, se quiseres…
- Não, obrigada.
- OK, então… tchau. – Despediu-se, dando-me um rápido beijo.
Fiquei durante alguns segundos a observar a sua mota, afastando-se progressivamente da escola.


Aquelas próximas horas iam ser um pouco torturantes, mas eu sabia exactamente o que fazer, quando fosse para a biblioteca.

***

- Entra, George. – Pedi, com um sorriso hospitaleiro. Até a sua maneira de andar parecia de um homem quase sem vida.
Notava, pela sua expressão, que ele sentia saudades da Melody, e se calhar eu era a última esperança, para encontrar a sua filha.
Servi o chá de limão, enquanto o George olhava em redor com um misto de tristeza e fascínio.
- Está tal e qual como me lembrava… A última vez que vim aqui foi quando vim buscar a sua filha para o Baile de Finalistas.


Sorri-lhe. Não sabia se havia de responder, todas as recordações do passado deixavam-me muito abalada, e ao George também, obviamente.
Quando acabei de servir o chá, recostei-me no sofá e preparei-me para ouvir o que o George tinha para me dizer. Eu já sabia, mas tinha de me mostrar surpresa.
- Então, o que me queres contar?
- É a Melody… Ela descobriu tudo…
- Tudo o quê?
Respirou fundo, pousou a sua chávena de chá na mesa de centro, e prosseguiu.
- Descobriu que eu lhe menti durante estes anos, descobriu que eu sempre encobri a morte da sua mãe…
- Eu sabia que isso ia acontecer, mais tarde ou mais cedo. – Disse, com um pouco de desdém no tom da minha voz.


- Eu também, mas não tão cedo! Como é que ela terá descoberto? Alguém lhe disse?
- É pouco provável…
- Então? Então como é que soube? Viajou no tempo ou assim? Não percebo…
- Não é disso que te tens de te preocupar agora… tens de te preocupar com a tua filha. Ela deve estar destroçada…
- Não faço ideia… mas é provável que esteja. Ela fugiu de casa. Estou desesperado, não sei onde é que ela está. Pode estar a viver na rua… ao frio… pode estar a passar fome. Não sei nada dela… Ela tem o telemóvel desligado!


- Tu podias ter evitado tudo isto, se lhe tivesses contado antes…
- Não podia! Não podia!
- Porquê, George? – A sua cara de desespero punha-me extremamente deprimida.
- Eu… Eu não… Não posso dizer…
- Que absurdo… a Melody já descobriu tudo, e mesmo assim continuas a encobrir factos que já não fazem sentido estar encobertos. Tu não percebes, pois não?


- Quem me dera contar a toda a família… a todos os meus amigos a razão pela qual eu encobri a sua morte… Mas não posso!
- Porquê? Isto é absurdo… George, estás a estragar a tua vida!
- Isso já não me importa… A minha vida já não faz sentido. Sinto-me… inútil. Sinto-me um fardo, um covarde. Um covarde que bateu na sua própria filha…
- Tu bateste na Melody?
- Fui impulsionado pelos nervos… - As suas mãos tremiam, como as mini-gelatinas que eu costumo fazer. – Bati-lhe no dia em que discutimos, quando ela descobriu tudo. Se calhar ela tem razão em odiar-me.
- Talvez tenha… Tu nunca bateste na Melody… nunca!
- Eu sei disso, OK? – A sua voz tornou-se mais grave e mais fria. – Desculpe… - Lamentou, baixando de novo a sua cabeça. – Você não sabe onde eu a possa encontrar?


Hesitei.
Depois de tudo o que ele me disse, expressando a sua dor, senti hesitação nas minhas palavras.
Mas não… não podia. Se a Melody não se sentia preparada, não podia ser eu a tomar as suas decisões. Ela já é uma mulher.
- Não… Não sei. Quem me dera poder encontrá-la por ti, mas ela deve estar bem. Ela provavelmente foi para casa de alguma amiga, para esquecer tudo isto. Dá-lhe tempo, mais tarde ou mais cedo ela irá regressar a casa, e vocês viverão felizes, em família.
- Deus lhe ouça. Bem… vou andando para o emprego. Ao menos o trabalho ajuda a distrair-me.
Levantou-se.


Acompanhei-o à porta, e despedi-me.



Capítulo 72

***

Parece que aquele pavão da Melody já regressou á escola. Como aquela espelunca era uma paz sem aquela criatura…
Estou perturbada. Sim, o verniz das minhas unhas de gel estalou, mas não é isso. Vi o pavão agarrado ao Jake, aos beijos!



Eu nem queria acreditar, que o meu Jaky estava colado àquela coisa penada.



Com aquele cabelo frisado, que parece que acabou de acordar. Aquela roupa saloia, e aquele colar? Eu nem sei qual foi a ourivesaria… quer dizer… bijutaria, que ousou vender uma coisa daquelas, mas para um pavão qualquer coisa serve.
O pavão anda um pouco estranho. Sempre que passo por ela, ela lança-me um olhar um pouco desesperado… preocupado. Não percebo… olha para mim como se… tivesse pena de mim. Que dó… deve ter, finalmente, percebido o quão eu sou bela, e neste momento aposto que deve estar a chorar baba e ranho, em frente ao espelho, que já se deve ter partido, lamentando a cara de pavão que tem.
Quando fui à casa de banho, que nem sei bem se é esse o nome adequado, ouvi alguém chorar num cubículo. Não é que me importe com isso, mas por vezes fico perturbada quando oiço alguém chorar. Sinto-me frágil, como uma folha de papel molhada.



Pouco tempo depois vi a Cassandra, com os olhos tão vermelhos como o meu verniz… estalado. Pergunto-me se foi ela que esteve a chorar naquela Divisão-Repugnante-do-Corredor-da-Escola-a-Que-Todos-Chamam-Casa-De-Banho. Mas isso não interessa… qualquer dia tenho de a despedir… já não me serve para nada. A reportagem sobre mim na escola está quase a acabar.



***

Esta noite não descansei o meu cérebro nem um milésimo de segundo. Dava voltas na minha cama vezes e vezes sem conta, mas nem conseguia cerrar as minhas pálpebras. Estava trovoada, outra vez. Eu sei que já tenho dezasseis anos de existência, mas não deixo de ter um pouco de medo. Mas havia uma coisa que tinha ainda mais medo… Chamar alguém para me acalmar. Sabia que se chamasse alguém, o meu pai também acordaria, e me censuraria sem dó nem piedade por ter medo de tempestades.



A minha colega, Melody Knight, sempre que me vê, lança-me um olhar de ternura e pena. Gostava de saber qual é a razão plausível que a fizesse olhar-me assim. Aquele seu olhar verde-água, brilhante como um cristal, punha-me intensamente nervoso.



Ela tem uma beleza incomparável que me dá vontade de lhe dizer, olhos nos olhos, tudo o que sinto por ela. Mas se fizesse isso, a única coisa que receberia em troca seria um colectivo riso de troça, e isso é-me completamente dispensável.



***

Sentia-me, anormalmente, nervosa. Não conseguia prestar atenção às aulas, mas o Jake dava-me sempre uma discreta cotovelada no braço para eu acordar daquele “coma”. Naquele momento, já o meu pai se devia estar a preparar para ir para casa da minha avó. Não conseguia parar de pensar na sua atitude, nem da maneira como iria correr a conversa. Será que a minha avó vai tomar bem conta do recado? Será que ela vai encobrir a todo o custo que eu estou em sua casa?
- Melody Knight! – O agudo vocifero da minha professora fez-me acordar.
- Sim, professora.
- Quais são os princípios da Razão?
- Hum… bem, eu…
- Sim… eu já previa essa resposta. Isto não lhe vai ficar nada bem na sua tabela!
- Desculpe, não volta a acontecer…
Não suportava obrigar uma professora fazer-me uma pergunta difícil para se certificar se eu estava atenta. Quase sempre sabia responder, mas naquele momento não. Estava completamente fora de mim.
- Tenta concentrar-te, Mel! – Sussurrou o Jake, que se encontrava mesmo a meu lado. – O que se passa contigo?



- O meu pai vai visitar a minha avó… hoje!
- Ah sim? Bem, agora explica-se o teu nervosismo…
- E o pior de tudo é que eu não posso lá aparecer, mas neste momento o que eu mais desejava era ser uma mosca, para ouvir a conversa.
- Mas tu sabes que não podes ir, e para além disso, a tua avó deve contar-te tudo, não é?
- Jake Martin, Melody Knight! Importam-se de vir ao quadro fazer este exercício?





***

O chá e as bolachinhas caseiras já estavam prontos. Chá de limão, que vira num livro antigo de receitas e decidi experimentar. Tinha um aspecto delicioso, e senti-me tentada a bebê-lo ainda antes de a minha visita chegar. Mas foi no momento em que me preparava para abrir o bule de chá para inalar aquele suave cheiro a limão, que ouvi a campainha tocar. Dispus tudo, muito rapidamente, num tabuleiro, pronto a ser servido e fui abrir a porta. Confesso-me surpreendida. Não estava à espera de o ver assim. Tinha claramente envelhecido, a julgar pelo cabelo grisalho que ostentava. Tinha um aspecto fatigado e cabisbaixo, e exibia um sorriso derrotado. Parecia uma pessoa diferente, e fez-me um pouco de impressão vê-lo assim. Convidei-o a entrar e rezei para que o meu lanche o ajudasse a aumentar a moral.

Capítulo 71

Depois de vestir o pijama e dar um beijo de boas noites à minha avó, que estava a ver a novela, precipitei-me para a casa de banho para lavar os dentes. Tinha bebido um copo de leite que a avó preparara sem me pedir, e sentia-me sonolenta. Passados dez minutos, estava no conforto da minha cama, a tentar adormecer. Mas isso não se revelou uma tarefa fácil. Rebolei vezes sem conta na cama, tentei dormir com e sem os lençóis, com a janela aberta e fechada e até ouvi música do meu Ipod. Geralmente adormecia a ouvir música, mas nada funcionara daquela vez. Já tinha passado uma hora e eu nunca me sentira tão desperta na minha vida. O sono que sentira após beber o leite tinha sido definitivamente temporário. Até ouvi a avó a desligar a televisão e a ir deitar-se. Só quando o meu olhar repousou sobre a moldura com a foto da minha mãe, a que trouxera de minha casa, é que me apercebi da razão da minha inquietude...


Eu sentia saudades do meu pai. Por mais raiva que eu tivesse dele, tinha saudades dos momentos que partilhávamos. Nem que fosse ele a queimar o jantar e ter de encomendar comida chinesa ou uma simples Pizza. Eu tinha vivido dezoito anos com ele, e por mais desiludida que me sentisse, não podia negar que me sentia preocupada com ele. Não sabia como é que ele estava. Podia estar doente que eu nunca saberia de nada. Podia estar de rastos com a minha ausência, sentir-se abalado… sozinho. Toda a angústia que eu acumulara estes dias manifestava-se agora. Sentia raiva da mentira em que me vira envolvida por causa dele, mas mal ou bem, o meu pai criara-me. E eu devia estar grata por isso, mesmo apesar de tudo o que acontecera depois. Senti-me desesperada e tive vontade de me auto destruir. Eu adorava a minha avó, mas o meu lugar era ao lado do meu pai. E ao mesmo tempo, mentir-me tinha sido algo que eu sempre abominara toda a minha vida. E agora via-me envolvida na pior mentira que podia existir. Será que eu estava a tomar a atitude correcta com o meu pai?
Depois tinha a Sarah… e o pobre Dave. Como é que iria confrontá-los? Não o podia fazer sem primeiro pensar em algo para dizer. Não os queria desmascarar para ficarem abalados… afinal… eles já sofreram o suficiente. Tinha de pensar bem no que ia dizer, mas não naquele momento, pois, não sei como, as minhas pálpebras começaram a pesar-me progressivamente, fazendo-me adormecer e só acordar com aquele imperdoável e sonoro despertador: a minha avó.



- Hoje tens aulas à tarde, não é? – Perguntou a minha avó, levando o pequeno-almoço à mesa.
- Sim, mas… como é que sabes?
- Tenho de estar a par de tudo! Ou pensas que eu não me preocupo com os estudos da minha neta? – Soltou um pequeno riso. – Vá, come, senão chegas atrasada.


Passados alguns segundos, a avó sentou-se a meu lado, com uma cara comprometedora. Notei logo a sua expressão, que me fixava incansavelmente.
- Passa-se alguma coisa, avó?
- Bem, hum… sim…
- Então?
- O teu pai telefonou-me esta manhã, um pouco antes de acordares. Ele… contou-me que tu fugiste de casa, como se eu não soubesse.
Notou a minha expressão de repulsa, e, um pouco indignada, disse-me.
- Não sejas assim, Melody! Tu nem imaginas como ele estava! Ele quase que chorava!
- Eu também chorei… e muito. Mais do que ele alguma vez chorou pela minha mãe.


- Ele vem cá a casa…
- Avó! Tu contaste-lhe que eu estava aqui?
- Mas é claro que não! Eu disse-lhe que não sabia… fiz de conta que era tudo uma novidade para mim! Ele vem cá tomar um chá e contar-me tudo o que aconteceu. Lá vou eu ter de usar os meus dotes de actriz, e fazer-me de chocada…
- A que horas ele vem?
- Esta tarde… por isso, fica na escola, até eu te dizer! Ele não te pode ver! Entendido?
- Claro…
- Muito bem… vai lá para a escola.
Tudo tinha acontecido tão depressa, que nem me deu tempo para pensar e cair em mim quando recebi aquela notícia. O meu pai, vinha visitar a minha avó?
O meu coração pulsava, com um misto de represália e euforia. Ainda me sentia magoada, mas uma coisa era certa: Ele não me tinha esquecido. Estava preocupado comigo.
Cheguei à escola, e esta já se encontrava apinhada de alunos. Não parava de pensar na notícia que recebera naquela manhã. Sentia-me eufórica e satisfeita por saber que o meu pai estava preocupado comigo e que ia visitar a minha avó, talvez, para ver se conseguia obter alguma informação sobre onde eu estava.
Ao fundo do corredor, avistei a Cassandra, encostada a um conjunto de cacifos, um pouco pensativa. Nesse aspecto, o Jake tinha razão… ela estava um pouco diferente.


Assim que ela me viu, mudou completamente a sua expressão. Empertigou-se com um sorriso de orelha a orelha, a fixar-me incansavelmente.
Olhei-a nos seus olhos verdes escuros, e continuei sem a ver a verdadeira Cassandra. Nada tinha mudado… nada.
- Melody! – Correu para mim, e abraçou-me. - Oh! Finalmente chegaste! Estava preocupada!
Preocupada? Aquela palavra era-me estranha, principalmente vinda da Cassandra. Como é que ela poderia estar preocupada comigo? Ela não fazia ideia do que eu passei naquela semana.
- Larga-me… - Disse, imperativa e mecanicamente.


A Cassandra afastou-se de mim, com uma cara um pouco desesperada e preocupada.
- O quê?
- Óptimo… vejo que percebeste… Agora, se me dás licença, tenho de ir para as aulas.
- Melody! O que se passa contigo? Estás diferente…
Virei-me para trás, inspirando profundamente. O meu olhar furioso mudou novamente a expressão da Cassandra.
- Eu? Diferente? – Soltei uma gargalhada de escárnio. – Então sou eu que estou diferente… eu. Olha bem para ti… será que sou mesmo eu que estou diferente?


- Não estou a perceber…


- Não? Pois bem… - Fiz uma pequena pausa, o ar a escassear dos meus pulmões e o nervosismo á flor da pele. – Percebe isto: Afasta-te de mim… Cassandra Brown.

Capítulo 70

O dia ia ficando progressivamente enublado, com o vento a uivar cada vez mais fortemente. Da cozinha, conseguia ouvir o som do fogão da minha avó, e o suave som de uma música lindíssima, que eu costumava ouvir quando era pequena.


Calcorreei a sala de estar, ouvindo o rigoroso crepitar da lareira acabada de acender, chegando as primeiras ondas de calor à minha cara.
Foi enquanto contemplava a simples mas belíssima decoração da sala, que vi uma moldura numa mesa de apoio junto a um sofá. Aproximei-me, e consegui ver que dentro daquela moldura repousava uma fotografia da minha mãe.
Sentei-me lentamente no sofá, a admirar a fotografia que tinha nas mãos. O colar que agora me pertencia brilhava por entre os dedos da minha mãe. Os seus cabelos pretos e ondulados caíam-lhe pelas costas, e o seu sorriso meigo encantava-me. Patente no seu rosto havia uma felicidade que eu nunca antes reconhecera nela. E isso tornava-a ainda mais bonita do que já era.



Pouco tempo depois, a avó veio ter comigo. Sentou-se a meu lado, contemplando também a foto da mãe, com muito carinho. Levou as mãos à boca e reprimiu um soluço, acompanhado de uma lágrima que lhe foi cair ao avental.
- Nesse dia, ela estava a usar o colar pela primeira vez - Contou a avó, enternecida.


Sorri timidamente, as mãos a começarem a soar pela ansiedade de querer saber tudo e mais alguma coisa sobre a minha mãe.
- Avó... quantos anos tinha a mãe, no dia em que tiraram esta fotografia?
- Tinha a tua idade, querida.
Voltei a sorrir. Então era por isso que ela era tão parecida comigo.
A avó retirou da moldura a foto e virou-a ao contrário. No seu verso estava escrita uma data: 17 de Março de 1981. Depois, pôs-se a tamborilar o indicador direito sobre a data, como se estivesse a chamar-me a atenção para ela.
- Quando ela fez 18 anos, ofereci-lhe este colar. E fiz o bolo preferido da tua mãe. Mas ela ficou tão emocionada com o colar que nem quis saber do bolo - Disse a avó, com uma gargalhada nervosa.
Tirei com delicadeza a foto das mãos da avó e pressionei-a contra o meu peito. A avó acariciou-me os cabelos e sorriu:


- Ela era muito parecida contigo. Era determinada, justa e muito teimosa também... tinha forças para lutar por aquilo que acreditava. Sabia ultrapassar os obstáculos que se interferiam no seu caminho. Não havia nada que a detivesse! Na verdade, a única coisa que a podia, alguma vez, ter feito desistir de um sonho, seria o teu pai. Ela tinha um amor inabalável por ele. Era capaz de mover montanhas para poderem estar juntos. Sabes, a tua mãe... a tua mãe era uma pessoa maravilhosa, e é realmente triste tu não a teres conhecido. Mas ela olha por ti, querida, onde quer que ela esteja, tenho a certeza que reza muito para que encontres a tua felicidade e sejas tão feliz quanto ela foi. E tu vais ser, Melody.
Assim que viu uma primeira lágrima a brotar-me do canto do olho, a minha avó levantou-se repentinamente e disse-me, com um tom de voz alegre:
- Vamos comer… estou esfomeada!
Talvez quisesse evitar que uma segunda e terceira lágrima brotassem em abundância, e isso deixava-me bastante orgulhosa da minha avó.
Pegou na minha mão, e quase me puxou para a sala de jantar, onde a mesa já estava posta com um conjunto de louça de porcelana, com padrões florais.
Pouco tempo depois de eu me sentar, já a minha avó trazia uma travessa com a comida.
- Serve-te, querida. – Disse a avó, ficando a observar-me a comer, tendo eu o pressentimento de que me queria dizer algo. – Quando é que pretendes regressar a casa?


- Também tu avó? Em casa do Jake foi a mesma coisa, agora aqui…
- Em casa do… Jake? Quem é o Jake? Que casa?
A comida quase me ficava entalada na garganta naquele momento, provocando-me um incomodativo engasgo.
- Estás bem?
- Estou… eu… estou… bem… - Disse, tentando recuperar.
- Então… quem é o Jake? Foste a casa dele quando? – A minha avó bombardeava perguntas incansavelmente.
- Bem… hoje eu… hoje eu fui a casa de um… amigo, o Jake… para buscar alguns livros que lhe tinha emprestado.
- Hum… estou a ver. E esse Jake é o tal… “amigo”? Aquele tipo de amigo que eu te falei ontem?


- Bem, huh… s-sim…
- Estou a ver… Não te preocupes, eu também tinha vergonha de falar sobre este assunto. Mas tu tens muita sorte!
- Porquê?
- Não és obrigada a falar sobre o assunto… eu era… e não só. Tinha de contar todos os detalhes… ao meu pai!
- Meu Deus, avó. Eu não conseguia… morria de vergonha! – Exclamei, soltando uma gargalhada.


- Pois é… por isso dá Graças a Deus por o teu pai não te fazer um questionário sobre a tua vida amorosa…
- Bem… na verdade… eu nunca lhe cheguei a contar…
Ao ver a minha expressão alegre transformar-se numa expressão triste e abalada, a minha avó pressentiu logo as saudades que eu sentia pelo meu pai.
- Tens saudades do teu pai… não é?
- Como é que poderia não ter, avó? É o meu pai… a pessoa com quem eu vivi durante dezoito anos…


- Talvez esteja na altura de regressares… não podes abandonar o teu pai! Tu és a sua razão de viver!
- Eu sei, mas ele magoou-me, e vai ter de pagar com isso…
- Tu é que sabes… agora… come!

Capítulo 69

- Tu não vais mesmo perdoa-la, pois não? – Perguntou o Jake, o seu olhar azulíssimo a fixar-me incansavelmente e os seus braços a envolverem-me os ombros.


Permaneci calada durante alguns segundos. Confesso que senti um pouco de hesitação numa resposta negativa. Todos aqueles anos passados com a Cassandra levaram-me a reflectir sobre a resposta, com pouco sucesso, pois estava ciente que a nossa amizade tinha morrido definitivamente.
- Não.
- OK… Pelo que tu me falaste sobre a vossa amizade, fico um pouco admirado com essa tua determinação. Não sentes saudades dela?
- Jake, podemos falar de outra coisa, por favor? Acho que já viajei tempo suficiente no passado! Não achas?


- Claro… desculpa… É que só acho que…
- Se a Cassandra pensasse minimamente na nossa amizade, com certeza que não se teria juntado à Sarah, e esquecer-me por completo.
- Como queiras. – Olhou para o colar que eu estava a usar. – Bonito colar…
- Obrigada… foi da minha mãe. A minha avó deu-mo para ter uma maneira de estar perto da minha mãe. Sinto-me orgulhosa por o estar a usar…
- Isso é muito bom… Agora podes sempre lembrar-te da tua mãe quando olhares para esse colar!


- É… Eu nunca o largarei… nunca.
Passados alguns segundos de silêncio, o Jake chegou-se ainda mais perto de mim, sussurrando ao meu ouvido:
- Sabes… eu não tenho a certeza se te disse isso mas… eu amo-te…
- Por acaso já me tinhas dito, mas eu não me canso de ouvir…
- Ainda bem… É que eu adoro dizer isto… Mas há uma coisa que eu adoro ainda mais…
- Rugby? – Disse, gozando.
- Não… isto…


Beijou-me ternamente, percorrendo levemente o meu braço com a sua mão. Todas as vezes que ele me beijava pareciam a primeira, pois o meu coração pulsava aceleradamente de uma forma constante. Sentia todas as emoções e abalos daqueles últimos acontecimentos abandonarem momentaneamente o meu corpo, fazendo-me concentrar apenas naquele quarto… nele.


De relance, olhei para o relógio, e já passava das 13H.
- Meu Deus… Olha-me só para as horas. – Caí em mim outra vez, sentindo todas as recordações reinstalando-se na minha mente. – Tenho de ir.
- Não queres que te leve a casa?
- Não é preciso, obrigada. Tenho um medo incontrolável de motas, como já sabes.
- Nem sabes o que perdes…
- Sei… um braço ou uma perna… Dispenso andar de mota…
- Tu és muito agoirenta…
- Sou realista. Vamos.
O Jake fez questão de me acompanhar à porta. Deu-me mais um beijo de despedida, e eu saí daquela sumptuosa casa, e cortei caminho para a casa da minha avó.
Apesar de a manhã ter sido espectacular, foi um alívio avistar a casa da minha avó.


Estava faminta, mesmo depois do pequeno-almoço de Rainha que tomara naquela manhã. E tinha a certeza que ela tinha feito um almoço delicioso, como sempre. Introduzi a chave na fechadura e senti de imediato um aroma tentador invadir-me as narinas. Fui até à cozinha dar um beijo à minha avó e espreitar o que tinha para almoçar: Peito de frango guisado com um molho que só a minha avó sabia fazer.
- Como correu o dia, querida? - Perguntou a avó, limpando as mãos à toalha de cozinha.
- Muito bem… Mesmo muito bem… - Respondi, com um ar sonhador e muito feliz.


- Estás a ver, Melody? A escola fez bem! E querias tu não ir…
- Hum… pois… tens razão… a escola ajudou-me a distrair.
Sorri. Sentia-me imensamente feliz. Estar com o Jake era descansar a alma, libertar os medos e receios e relaxar... era como se o resto do mundo avançasse, mas eu parasse no tempo. Sensação de liberdade como aquela não existia em parte nenhuma. E se a avó sonhasse sequer que eu não tinha posto os pés na sala de aula...!

Capítulo 68

Não sabia para onde o Jake me levava. Talvez para um sítio isolado, onde pudéssemos estar sozinhos num ambiente calmo. Por momentos pensei no Campo de Rugby, mas o caminho que levávamos era completamente diferente do que eu conhecia.
- Jake, para onde vamos? – Perguntei, um pouco atónita.
- Já vais ver.
Começámos a entrar numa rua que eu nem sabia que existia em Fort Sim. Uma rua ampla e de uma grande dimensão, com um conjunto de casas modernas que lhe davam um aspecto muito acolhedor. Era um ambiente completamente diferente do que me habituara a viver.
Quando finalmente parámos, fiquei perplexa com o que vi. Estava diante de uma espécie da mansão moderna. As paredes eram todas brancas, com janelas de grandes dimensões que possibilitavam a visualização do interior da casa.


E a minha avó muito provavelmente julgava que eu estava nas aulas.
O Jake levou a mão ao seu bolso e tirou um porta-chaves em forma de bola de Rugby, e, seleccionando a chave maior, abriu a porta daquela casa, e foi aí que percebi que ele me levara a sua casa.
Abriu a porta, e fez-me sinal para entrar primeiro. Entrei e consegui logo sentir o cheiro a novo inundar-me as narinas.
O Hall de entrada era grande, comparativamente com o meu. Tinha uma planta enorme encostada a um canto e, paralelamente a porta estava uma mesinha com um telefone e molduras com fotografias do Jake e do irmão quando eram pequenos. Perpendicular a esta, viam-se dois cadeirões vermelhos que pareciam novinhos em folha.


O Jake foi á cozinha beber água, e eu entretive-me a observar a sala, enquanto esperava por ele. Tal como o Hall de entrada, também a sala era moderna e bonita. Grande e ampla, tinha sofás pérola que pareciam igualmente novos, tal como o resto da habitação. Ao fundo da sala estava uma estante com livros e uma mesa grande com seis cadeiras que funcionava como sala de jantar, como na minha casa. Tinha tudo um ar acolhedor e simpático, e sentia-me em casa.


- A tua casa é muito bonita... é moderna! – Exclamei, ainda olhando em redor espantada.
O Jake riu-se, fitando a minha expressão agradavelmente surpreendida.
- O meu pai, como é pintor, gosta de ter a casa moderna e com as cores a combinarem... E a minha mãe agradece, claro! - Disse ele, com um sorriso caloroso. – Anda… vamos para o meu quarto.
- Não está ninguém aqui?


- Claro que não… O meu pai foi para uma exposição em Londres, e só volta amanhã, a minha mãe está a trabalhar e o meu irmão está na escola. Por que achas que eu te levei aqui? – Lançou-me um olhar um pouco irónico, que me fez varrer a sala com os olhos, tal era a vergonha. – Anda.
Subimos umas escadas de pedra macia com corrimão de ferro brilhante. As escadas iam desembocar a outro Hall. O mesmo tinha quatro portas. Provavelmente com acesso aos quartos.
O Jake encaminhou-me ao seu quarto, e eu fiquei ainda mais surpreendida. Aquela divisão distinguia-se perfeitamente do resto da residência. Este era constituído por cores azuladas e negras. O chão era de madeira, com um tapete um pouco amarrotado ao lado da cama. Tinha uma cama que dava a ideia de ter luzes em néon na sua base.


A parede estava praticamente coberta por prateleiras, cheias de taças e troféus, bandeiras a representarem Os Lamas, a sua equipa.


Havia outra prateleira com um capacete de Rugby um pouco mais pequeno que a sua cabeça. Notando a minha expressão interessada para esse objectos, o Jake explicou-me:
- Esse foi o capacete que usei no meu primeiro jogo de Rugby. Tinha 10 anos. – Soltou uma gargalhada. – Quando tomei posse da bola, em vez de correr, esperei aplausos do público, mas só conseguia ver caras preocupadas, pois, nesse mesmo instante, metade dos jogadores da equipa adversária atiraram-se para cima de mim, a fim de me tirar a bola, com sucesso.
Soltei uma gargalhada um pouco mais intensa.
- Não acredito… e agora és capitão da equipa…
- Pois sou… - Confirmou ele, com uma expressão triunfante.
O Jake sentou-se na cama, convidando-me para sentar também. Sentia-me à vontade naquela casa, como se fosse minha. Não me sentia como se fosse na casa de um estranho, onde eu tivesse vergonha de me sentar onde quer que fosse, e permanece-se quieta, de pé, o tempo todo.
Sentei-me.
- Espero que não te importes com a desarrumação.
- Não… podes crer que o meu quarto está bem pior… estava


- Tu não fazes mesmo tenções de voltar para tua casa pois não?
- Por enquanto não, Jake. Estou bem onde estou agora. A minha avó trata-me muito bem e eu sinto-me bem ao seu lado.
- Nem acredito na quantidade de coisas que passaste na semana passada. Nem me passava pela cabeça.
- Sim… e confesso que ainda estou surpreendida de teres acreditado em mim…
- Eu sempre acreditarei em ti… sempre!


E com isto, deu-me um caloroso beijo.


- As coisas também não mudaram muito na tua ausência. – Continuou - A Sarah continua a mesma ridícula de sempre, quase a implorar que os jornalistas lhe tirem fotografias, e a Cassandra… bem… essa até mudou um pouco.
- Mudou? Ah… já sei. Fez uma permanente ao cabelo, foi? – Perguntei, friamente.
- Não! Ela tem estado abalada, Melody. Abalada com qualquer coisa. Até nas aulas tem estado um pouco lunática. Acho que ela tem saudades tuas…
Soltei um riso de escárnio ao ouvir a palavra “saudade”.
- Jake… eu sei que me queres reconfortar, mas todos nós sabemos que a Cassandra nunca vai mudar. Vai ser sempre a mesma obcecada pela Sarah e pela popularidade.


- Tu não percebes? Ela já não anda com a Sarah! Às vezes fala com ela, e chegam a tirar fotografias juntas, mas toda a gente percebe que ela já não está tão “fanática” pela Sarah. Eu acho que ela mudou.
- Isso já não me importa… não quero saber. A Cassie… Cassandra, escolheu o seu caminho… e eu… escolhi o meu.