Capítulo 80



Abri o papel, e um misto de nervosismo e entusiasmo invadiu-me o coração. Era uma sensação inexplicável que se intensificava de uma fora incessável. No papel, estava uma letra um pouco rabiscada, mas que eu conseguia ler perfeitamente. Comecei a ler.

“26 De Dezembro de 1992

Hoje discuti, pela primeira vez, com o Arthur. Nem sei a razão porque fui ter com ele àquele escritório. Estou cansado de discussões e insinuações sobre o facto de eu não querer dizer à minha filha que a Melody morreu. Jamais alguém compreenderá a razão que me levou a fazê-lo… jamais. De todas as dificuldades que já enfrentei, nenhuma foi tão difícil como a que estou a enfrentar agora. A tristeza… o buraco negro que se instalou no meu coração deixa-me sem forças para viver. Prometi a mim mesmo que prosseguia com a minha vida, junto da minha filha, mas essa promessa está prestes a romper-se. Não consigo suportar esta terrível e, quase inaceitável, perda. Toda esta tristeza reflecte-se no que eu faço no meu dia-a-dia. Não faço as minhas coisas com tanta disposição e vontade que fazia anteriormente. Mas o que me deixa ainda mais abalado no meio disto tudo, é o pouco, ou nenhum, apoio que recebi por parte da família da Melody.


A Lydia, a mãe da Melody, olha-me desdenhosamente, e não aprova esta minha decisão, de não contar nada à minha filha. O Arthur, quase que já nem me atrevo a dirigir-lhe a palavra. O seu olhar, não desdenhoso, mas furioso, dá a entender, de forma perfeitamente nítida, que também não aprova a minha decisão. Ninguém aprova, e, confesso, que se eu não soubesse o Porquê desta decisão, que também não aprovava. Mas… apesar de tudo o que me dizem, estou de consciência limpa e leve.
Vou concretizar o desejo da Melody, e dar à nossa filha o que a vida tem de melhor. Vou vê-la crescer, ensiná-la a andar, a falar... Acompanhá-la nos estudos, e vê-la evoluir. Quando digo que não estou preocupado com o futuro, refiro-me ao momento, que eu não duvido que chegue, em que a minha filha descubra que eu lhe menti. Mas não há nada que eu anseie mais, do que vê-la crescer, e esse, é o futuro que eu mais quero.
Os meus amigos, colegas de trabalho, e até a minha família, não aprovam a minha decisão, que, na verdade, nem é bem minha.


Tudo começou na noite de 19 de Outubro, dois meses antes de a minha filha nascer. A Melody começou a sentir-se muito indisposta e tonta. Vomitou a noite inteira, e só se sentia razoavelmente melhor quando se deitava. Comecei a preocupar-me, mas ela dizia-me sempre que era normal da gravidez, e tentava mostrar-me uma cara bem-disposta e despreocupada, mas eu sabia que por dentro, o seu medo era mais intenso do que qualquer coisa. Passaram-se semanas e semanas e a Melody continuava constantemente maldisposta, até que a levei ao médico, que disse que o acidente recentemente acontecido, o atropelamento, tinha deixado marcas negativas na sua gravidez, e que, a partir daquele dia, iria ser considerada uma gravidez de risco. Contudo, a Melody negou por completo, e afirmou que se sentia bem e que aquele atropelamento não passava de uma pequena pancada, que apenas mostrou os seus sintomas de uma forma passageira. Eu e o Arthur estávamos extremamente preocupados, mas a felicidade e ansiedade da Melody, pelo dia do parto estar para breve, deixava-nos mais descansados, e éramos forçados a acreditar que aquilo não passava de um dos complexos sintomas de gravidez. Até que subitamente, a Melody melhorou, o que me deixou muito aliviado.


Passaram-se dias, e nem um sinal de indisposição ou tontura, até que, gradualmente, comecei a esquecer o que tinha acontecido. A sua alegria de viver, dava-me ainda mais vontade de a beijar e abraçar. Iríamos construir uma família nossa, uma família perfeita, feliz e em harmonia. Nada me punha triste ou abalado, naquela fase, apenas conseguia pensar, tal como a Melody, no dia em que a nossa filha ia nascer. Compramos-lhe roupa, mobiliário, brinquedos. Fizemos obras na nossa casa, o que mudou por completo as nossas vidas. Mas um mês depois, a Melody teve uma recaída, que a deixou ainda mais abalada e sem forças. Foi uma recaída ainda mais intensa do que a anterior, e a Melody começou a não poder estar de pé mais do que cinco minutos, as tonturas eram frequentes, e os vómitos também. Não obstante, ela continuava feliz e satisfeita com a vida. Falava com a minha filha constantemente, afirmando que o dia do seu nascimento seria o mais feliz da sua vida, e que estava ansiosa por a ter nos seus braços. Mas ela já sabia… já estava ciente do seu triste destino. Estava ciente que não a poderia ver, não a poderia ter a seus braços, nem sequer ouvir o seu choro.
E foi aí, que, um dia, a minha vida deu uma volta de trezentos e sessenta graus.”

* * *


Não podia acreditar que tinha perdido o papel. Andava com ele no bolso de trás das calças há 18 anos. Tinha-se tornado uma rotina tirar o papel das calças quando estas iam a lavar e pô-lo de manhã no bolso de trás das que ia usar. Nunca o esquecera antes. Saí apressadamente de casa, com medo de ter perdido o papel definitivamente. Sentia-me ansioso. Parecia que tinha milhares de borboletas na barriga, e até respirava com rapidez. Mal entrei no carro, arranquei, ignorando o tiquetaque que o carro fazia quando não punha o cinto. O que eu queria era chegar a casa da avó da Melody rapidamente. Talvez ainda houvesse uma hipótese, por muito remota que fosse, de reaver a pagina do meu diário.


* * *

“A Melody veio ter comigo, com um olhar terno e brilhante, e disse-me, infinitamente, que me amava, e que eu tinha sido a melhor coisa que lhe tinha acontecido na vida. As lágrimas brotavam-lhe dos olhos como se fossem riachos e abraçava-me fortemente.
A Melody já sabia que ia morrer, embora eu o negasse constantemente. Ela enfrentava a morte mais corajosamente do que qualquer outra mulher. E foi por isso, que ela me encarregou desta missão. Eu tenho uma missão! Uma missão que imortalizou o nosso amor… Proteger a minha filha. A última coisa que a minha esposa desejava, era que a sua filha viesse ao mundo para sofrer. Ela recusava-se a crer que a sua filha fosse confrontada com uma verdade tão dolorosa como aquela.
Foi por isso que ela me pediu que eu tomasse conta da minha filha, servisse de um pai e de uma mãe e, acima de tudo, encobrisse a sua morte. Ela insistiu, quase que implorou, embora eu, apesar de recusar a ideia de ela morrer, discordasse totalmente com aquele pedido, o que desencadeou numa discussão sem fim.


Até que, no dia do nascimento da minha filha, tive de encarar aquele pedido da minha amada, como uma missão, que levei avante, e fui contra tudo e todos, sem revelar o porquê da mentira, a pedido da minha mulher. Mantenho este segredo comigo, até onde a vida me levar… “


Capítulo 79

"... E Sarah Mello, a modelo de 18 anos, dita a nova grande notícia de hoje. Segundo uma colega da escola, cujo nome fictício é Emily, a jovem mais influente de Fort Sim é órfã de ambos progenitores. Sarah Mello não quis adiantar a confirmação deste facto, nem quaisquer pormenores. A sua amiga e acessora, Cassandra Brown, mostrou-se surpreendida e disse não estar a par da situação. Ao que conseguimos apurar, a jovem modelo frequentou o orfanato Mathew Kaufmann e, segundo consta, a sua educadora dá pelo nome de Béatrice. Tentámos contactá-la, mas esta não se mostrou disponível. Vai ser uma notícia a ser tratada neste telejornal. "

“Sarah Mello Órfã!”


“Mathew Kaufmann salvaguardou estrela da moda”


“O orgulho (morto) dos pais de Sarah Mello”


“Escândalo na passerelle”


“Fama ou amor?
O que escolheria Sarah Mello?”


***


- Não se fala de outra coisa! – Resmungou a avó, desligando a televisão e atirando o jornal para a mesa de centro. – Já não se pode confiar em ninguém… vivemos num mundo de farsas e mentiras… Qualquer dia já nem nós próprios sabemos quem somos.


A notícia de a Sarah ser órfã espalhou-se pelo mundo como um Tsunami gigante. Nada me fazia prever aquela situação, antes de ir falar com a Sarah. Não podia adivinhar que uma jornalista estava a escutar a conversa, nem podia adivinhar que uma reportagem sobre a fama da Sarah se transformaria rapidamente numa reportagem sobre as farsas da Sarah. Mas mesmo assim, sentia-me culpada por toda aquela situação. Se calhar podia ter evitado aquele súbito confronto? Poderia eu ter apenas ficado calada e deixar a Sarah viver a sua vida? Mas não fui capaz, iria contra a minha natureza.
Aquela semana tinha sido fortemente dolorosa e difícil de ultrapassar, e só de pensar que ainda me faltava uma pessoa, dava-me vontade de nunca mais voltar à escola.

***

Acordei com os douradíssimos raios de sol a penetrarem nas frestas dos estores e a inundarem-me a face. Finalmente era Sábado, embora me fosse indiferente. Os dias, as horas, os minutos… tudo se tinha tornado irrelevante na minha mente, começando a fazer tudo mecanicamente, sem vontade… sem vida.
Naquele dia, estava determinado a mudar a minha rotina. Tinha de espairecer e pensar na minha vida e no que fazia nessa mesma vida.
Levantei-me e fui-me vestir, para começar um novo dia, ou apenas tentar…


***

- Bem… vamos lá arrumar esta casa… se é que se pode chamar a isto casa… isto mais se podia chamar um armazenamento de resíduos…
- Que exagero avó…
- Eh… diz que sim, diz que sim. Vá, minha menina, levanta-te.
Levantei-me lentamente, ainda com as pernas a latejar em consequência daquela semana intensiva. Vesti um avental e perguntei:
- O que é que eu faço?
- Bom, como tu estás cansadinha, vou deixar-te a tomar conta do pó desta sala, que eu vou tratar da cozinha e depois dos quartos, e já estou a ser demasiado caridosa!
- O que faço na sala?
- Primeiro de tudo, aspira o chão e os móveis… Ah, e nada de aldrabices! Quero tudo aspirado, até debaixo dos sofás!
- Sim, Avó…
Arrumar a casa era como estar num quartel militar, mas o pior de tudo, é que preferia mil vezes um general grosseiro com a barba por fazer do que a minha avó, nos dias das limpezas.


Peguei no aspirador e comecei a aspirar a sala, um pouco desmotivada e cansada. Olhei para a cozinha, e associei a minha avó, a lavar a loiça, com uma criança numa loja de doces. Como ela adorava o dia das limpezas…
No fim de aspirar quase toda aquela divisão, arredei, custosamente, o sofá maior de todos, e comecei a aspirar, detalhadamente, como a minha avó me mandou. Tão detalhadamente, que encontrei um papel no chão, perfeitamente dobrado, que, por segundos, me fez lembrar uma das cartas de amor que o Jake me mandara, e quase que rezei para que não fosse uma dessas, mas seria muito pouco provável.


***

Saí de casa, e, como de costume, levei as mãos aos bolsos, para me certificar que não me esquecia de nada. Mas algo estava a faltar, algo que me fazia sentir um enorme vazio no peito e não só naquele dia...


***

Agachei-me e peguei no papel… tinha uma fina camada de pó por cima, o que mostrava que já lá estava há algum tempo…


***

A página do meu Diário!


Faltava-me a página do meu diário, que eu tinha arrancado do mesmo, para a manter perto de mim. Estava ciente que não estava em mais lado nenhum de casa, pois tinha-a arrumado, por alto, há poucos minutos, e também sabia que nunca a tirava daquele bolso. Poderia estar em qualquer lado, mas onde? Onde? Era imperdoável se a perdesse.

***

Assim que peguei no papel, o meu coração disparou radicalmente, quase me fazendo perder as forças nas pernas. Não sabendo porquê, estava tremendamente nervosa pegando naquele papel… algo inexplicável… uma ânsia infatigável a espremer-me o coração…

Capítulo 78




***

- Jake! Jake!
- Huh? O quê?
- Men, estás a dormir ainda?


Não sabia o que se passava comigo. Não conseguia pensar em mais nada senão na Melody. Os seus cabelos pretos como o breu e os seus olhos verdes como esmeraldas. Não parava de pensar na sua beleza. Mas tentava fazer um esforço para me manter atento naquela reunião de equipa, embora não conseguisse.
- Parece que já não te importas com a nossa equipa, mano. – Disse o Michael. - Estás na lua, aposto que nem ouviste os nossos planos para o Torneio Inter-Cidades deste ano.


- Ouvi, pois! Vocês estão a pensar em… em… perdoarem o vosso capitão. Desculpem malta, não estou com cabeça para traçar planos.
- Isso já reparámos… o que se passa? – Indagou Ryan. - É aquela Melody, não é? Já não consegues pensar em outra coisa…
- Não! Bem… na verdade… sim.


- Tu estás mesmo apanhadinho não é?
- Michael, não comeces, pode ser? – Pedi.
- OK, chefe.
Peguei no meu capacete e tentei mudar de conversa. Não estava mais disposto a ouvir aquelas piadas.
- Está quase na hora… vamos para a escola?
- Que seca… Quando é que temos férias? Já estou farto da escola… - Resmungou o Michael.


Montei na minha mota, e, com o resto do pessoal, segui caminho para a escola.

***

A Sarah ficou petrificada durante alguns segundos, sem saber o que me responder. A sua respiração acelerou repentinamente e não parava de me fixar.
- Não sei do que estás a falar… Órfã? Eu? – Soltou outro riso de escárnio.
- Não tentes negar a realidade, Sarah. Tu sabes muito bem do que eu estou a falar…
- NÃO! NÃO SEI! E tu não sabes nada da minha vida! NADA!
- Sei o suficiente!
- NÃO SABES! Mas quem é que pensas que és? Chegas aqui e só dizes mentiras sobre mim? É isso?


- Mentiras? Sarah, tudo o que eu te disse não passa de uma pura verdade!
- NÃO! É MENTIRA! Sabes que mais? Eu nem sei porque é que estou a falar com um pavão como tu. Adeusinho.
Voltou-se para trás, ajeitou o seu cabelo, e seguiu corredor fora. Mas eu não desisti. Tinha de pôr um fim àquela farsa.
- A Miss Béatrice, tratava-te bem?
Aquelas palavras saíram da minha boca e atingiram a Sarah como uma rajada de vento, fazendo-a parar no meio do corredor e virando-se lentamente para trás, os olhos a esvaírem-se em lágrimas.
- O quê? – Inquiriu.
- Miss Béatrice, tua educadora, no Orfanato Mathew Kaufmann, que, suponho eu, já fechou há algum tempo.
- Tu não sabes nada…
- Mas quem é que estás a querer enganar Sarah? Quem? Não percebes que toda a tua vida é uma farsa?!
- CALA-TE! CALA-TE! Tu… não fazes ideia do que eu sofri naquele Orfanato! Não fazes a menor ideia!



- Talvez saiba… Os teus pais morreram, num acidente de carro… - Ao ouvir aquelas palavras, a Sarah começou a chorar incansavelmente. – Porque escondeste esta verdade do Mundo, Sarah? Porquê?
- Tu não fazes a menor ideia… - Repetiu. – Das noites em que eu não conseguia dormir, com as dores que tinha quando me batiam!
- Sarah, é por isso que eu estou aqui! Para te ajudar! Eu quero ajudar-te!
- COMO? Queres trazer-me os meus pais de volta? É isso? Tu não me queres ajudar… queres humilhar-me!
- Sarah…
- Vai! Vai contar a todos a “Verdadeira Sarah Mello”, vai! Vai publicar nos jornais para o mundo saber! Vai à televisão, se for preciso! VAI!


- Eu nunca faria isso!
- Poupa-me! Depois de tudo o que eu te fiz! VAI! Desmascara-me! É o que tu mais desejas agora!
- Isso não é verdade!
- VAI! Vai contar aos jornalistas!
Nesse momento, uma voz feminina perfurou o ar como um punhal, fazendo o meu coração pulsar intensamente.
- Não é preciso… - Uma mulher, com cabelos loiros esbranquiçados, vestida formalmente, surgiu no corredor, com uma máquina fotográfica na mão.


A Sarah virou-se para trás, e sussurrou «Não» vezes e vezes sem conta.
A mulher olhou, ora para mim, com uma expressão de gratidão, ora para a Sarah, com um olhar de desdém.
- Parabéns, Sarah Mello, vai para a primeira página.


Depois disso, apenas consegui ver o flash incandescente sair da sua máquina fotográfica e ser projectado para a Sarah, que caiu de joelhos no chão, derramando lágrimas, e dezenas de jornalistas a correrem até ela, fazendo perguntas infindavelmente e a projectarem milhares de flashes das suas máquinas fotográficas.


Capítulo 77

Saí do bar, e vagueei pelo corredor principal, ainda desnorteada por confrontar o facto de que dificilmente o Dave me diria alguma coisa. O seu intenso nervosismo sempre que tocava no assunto, levava-me a alimentar a minha insistência, pois sabia que ele escondia algo. O trauma do seu passado silenciava-o de tal maneira, que quase me levava ao desespero. Eu quase que implorava que o próximo desafio não fosse assim tão difícil.


Ao fundo do corredor, consegui logo notar a sua presença, pela voz estridente, apressada, e, claro, com o seu típico toque snob. Nem queria acreditar que iria fazer aquilo, mas tinha de ser, tinha de o fazer, para a fazer ver quem realmente é.
Aproximei-me e o meu coração quase me saía pela boca. Não me lembrava do que era estar realmente nervosa. A Sarah estava a falar entusiasticamente com um jornalista, que a ouvia atentamente. Estava rodeada de câmaras e jornalistas que faziam esforços infatigáveis para a fotografar.
- E… saímos do Ar. – Disse, com uma voz imperativa, um operador de câmara, e as expressões e atitudes entusiasmadas logo se transformaram em expressões cansadas e preocupadas com tudo, menos a Sarah.
A Sarah tirou rapidamente da sua mala um estojo de maquilhagem e um espelho pequeno e começou a retocar a sua maquilhagem, enquanto que os restantes jornalistas se dirigiam ao bar da escola, provavelmente para comer algo, no seu curto intervalo.
Foi nesse momento, que me movi, mecanicamente, para junto dela, e com uma voz rouca, chamei:
- Sarah…
Esta olhou para trás, com um olhar de puro desprezo, e rapidamente se voltou, continuando a retocar a sua maquilhagem.
Suspirei, e repeti:
- Sarah…
- O que é que foi? – Perguntou, arrogantemente.


Hesitei um pouco, mas não parei de fixar os seus vulgares olhos castanhos, rodeados de uma espessa camada de rímel, ainda a ser reforçada.
- Quero falar contigo…
- A sério? Olha que eu não quero…
- Sarah, não penses que estou a falar contigo de livre vontade. Eu não me dirigia a ti se não fosse mesmo importante.
- Querida, qualquer assunto tratado com moi é importante…


- Eu não acho, mas, se o consideras, não vou negar. Mas o assunto que tenho para falar contigo bate qualquer um dos teus supostos assuntos importantes…
- Ah sim? Deixa-me adivinhar… Queres um autógrafo é?
O sangue subiu-me à cabeça, sentindo uma ígnea vontade de lhe responder, mas contive-me, tinha de falar com ela calmamente.
- Deixa estar… se eu quisesse a Cassandra dispunha-me de um, por isso não te incomodes…
- Óptimo, agora se me dás licença…
- Eu sei de tudo, Sarah! – Exclamei, inconscientemente.
Voltou-se para trás, com o seu constante olhar de desprezo a fixar-me incansavelmente.
Soltou um risinho de escárnio, ao mesmo tempo que caminhava para mim, os seus saltos altos a provocarem um irritante roído no chão.
- Minha… de que espécie és tu mesmo? Bem não interessa… Mas é claro que sabes tudo sobre mim… Basta ires a um desses quiosques reles ao pé da tua casa reles e encontras milhares de revistas com a minha biografia. Quem é que, hoje em dia, não sabe quem é a Sarah Mello? – Soltou outro risinho estridente.
- Toda a gente…
O seu riso foi logo cortado, e o meu coração acelerou intensamente.
- Desculpa?


- Ninguém sabe quem é a verdadeira Sarah Mello… Ninguém…
- Poupa-me. – Disse, voltando a soltar um risinho. – Todos sabem quem é a verdadeira Sarah Mello, todos. Nasci em Champs Les Sims, França, pais de negócios, ou seja, RICOS, mudei-me para esta aldeiazeca, nem sei bem porquê, e tornei-me famosa. O que é que não percebes?



- Não percebo porque não contas a verdadeira história da Sarah Mello, a todo o mundo, e paras de iludir as pessoas com essa história falsa.
Consegui notar a sua cara nervosa, ao mesmo tempo que a tentava abafar com os seus risinhos.
- Não sei do que estás a falar… - Negou, mexendo no seu cabelo dourado.
- Eu esperava que não percebesses… - Disse, com um olhar enervado, não parando de a fixar. – Vou começar de novo… - Quase me atrevia a dizer que o meu coração se salientava na minha camisola. – Tu foste órfã…



Capítulo 76

Abri a porta e entrei lentamente, fixando o Dave, que já estava colado a um dos seus livros. Sentei-me em frente a ele e quando ergueu a sua cabeça, olhando para mim com um ar atónito, eu comecei:
- Bom dia, Dave…
- Bom dia… - Gaguejou.
- Então… o que estás a ler? WOW… O livro de Geografia… já não lhe toco desde a última aula…
Olhou para mim com um olhar de extrema confusão, e ao mesmo tempo de gozo.
- Queres dizer, desde ontem?


- Hum… sim. Então, chegaste aqui muito cedo?
- Sim. Como a minha mãe diz: Deitar cedo, e cedo erguer, dá saúde e faz crescer.
- A tua mãe… hum… - Fiquei com um ar pensativo, pelo que fez com que o Dave me perguntasse.
- O que tem a minha mãe?
- Nada, nada… Dave… dispensas-me algum tempo do teu estudo para eu falar contigo? Preciso mesmo…
Fechou o seu livro, pousou-o na pilha dos seus restantes livros que repousavam a seu lado, e olhou para mim, com o seu olhar semicerrado.
- O que me queres dizer?
- Bom… digamos que, a conversa de ontem ficou pendente, e eu queria concluí-la agora.


Levantou-se bruscamente, e pegou nos seus livros, um a um.
- Eu já disse que não faço a mínima ideia do que estás a falar. Sou tímido porque… quero.
- Porque… queres? Dave, estamos a falar de tu seres gozado e descriminado em consequência de tu o “quereres”. Deve haver alguma razão para seres assim tão tímido…
- Eu já te disse que não, Melody! – A sua primeira frase com ênfase, o que me levou a acreditar ainda mais que ele não me queria dizer a razão. – Sou tímido… é a minha maneira de ser… E… porque é que insistes tanto com este assunto? Alguma razão em especial?
- Bem… Sim, caso contrário não insistia tanto, não achas?
Olhou-me com um misto de medo e surpreendimento. Fechou o seu livro, e disse, voltando ao seu tom de voz trémulo e tímido.
- Já te disse… Este sou eu… Nasci assim. O que queres que faça? Eu sou assim, é a minha natureza!


- Não, não é, Dave! Bolas! Porque não desabafas comigo? Não percebes que eu te quero ajudar?
- Mas ajudar em q-quê? Queres… queres levar-me a um psiquiatra? – Ficou subitamente nervoso. – Pensas que sou louco? É isso?
- O quê? Dave… algo te marcou no passado, eu tenho a certeza disso!
- Como?
Hesitei.
Sabia que, se contasse como é que tinha descoberto toda a verdade, ele se limitava a sair daquele bar e deixar-me ali sozinha, pensando que eu enlouqueci.
- Não me perguntes como… apenas diz-me: o que é que te marcou no passado?
- NADA!


Olhei-o, um pouco nervosa e desesperada. Não havia maneira de o fazer desabafar, era impossível!
Pegou nos seus livros e na sua mochila, e saiu de rompante do bar.



***

A Sarah chamou-me para a acompanhar numa última filmagem para a sua “Grande Reportagem”. Estou farta. Estou farta de usar aqueles brincos banhados a ouro que só servem para tilintar no meio dos corredores, estou farta da roupa justa, que mais parece que está pintada no corpo, e, sobretudo, estou farta da Sarah. Finalmente descobri que tipo de pessoa ela é. Rude, fútil, convencida e materialista. O único acto altruísta da sua parte, serviu só para agradar os jornalistas, e mesmo assim, fazia-o contra a vontade.


Estou arrependida. Estive dois meses com uma total cegueira, e agora perdi todos os meus verdadeiros amigos, a começar pela Melody. Tenho saudades daquelas nossas longas tardes juntas, a comer gelado de iogurte, à beira do lago do parque central. Riamo-nos às gargalhadas, e eu perdia a noção do tempo quando estava com ela. Ela foi uma amiga muito especial, e agora perdi-a. Ela nunca mais vai querer olhar para a minha cara… nunca.



***

Sarah Mello… concentra-te. Coragem! É a última filmagem… tem de ficar perfeita!
Estou farta… farta, é o que eu digo. Estou farta desta gente, farta desta escola, farta desta… aldeia. Nem sei porque vivo aqui, no meio do nada. Estou farta de ter de reforçar o meu rímel com nove camadas e o blush com vinte e duas. Quero apenas colocar as minhas normais e habituais cinco camadas de rímel e quinze de blush.


Já para não falar nos flashes das máquinas fotográficas… qualquer dia fico cega! Meu Deus, assim já não me podia pintar como deve de ser… tinha de contratar aquelas rapariguitas com cursos de rasca, com a mania que sabem pintar esta carinha linda. NÃO!


Capítulo 75

À mesa, enquanto me servia o jantar, a avó lembrou-se de me avisar, que no fim-de-semana seguinte, iria fazer uma limpeza geral em sua casa, e, como já previa, eu deveria ajudar. Não estava com a mínima disposição para ajudá-la com as tarefas domésticas, sentia-me extremamente cansada e sonolenta.
- Não podemos fazer isso noutro fim-de-semana, avó?
- Não! Está decidido. Esta casa está de pantanas, por isso vais-me ajudar a limpá-la. Posso deixar-te descansar na Sexta-Feira, mas no Sábado… mãos à obra!


Insistir ou Implorar, eram as palavras que eu, definitivamente, tinha de riscar do meu dicionário, pelo menos na companhia da minha queridíssima e teimosa avó.


***

Cheguei do trabalho, indescritivelmente cansado. As minhas pernas pareciam que pesavam toneladas e os braços também. Conquanto, o silêncio que pairava em casa era ainda mais pesado, pondo-me cada vez mais deprimido. Sentia falta da minha filha, a guinchar o meu nome, sempre que eu chegava a casa, sentia falta daquelas longas noites, a ver filmes alugados, apesar de nunca termos paciência para ver o final de cada um.
Dirigi-me para o meu quarto e sentei-me na cama, a pensar nos acontecimentos daqueles últimos dias. A conversa entre mim e a mãe da Melody tinha sido em vão. Fui com intenções de descobrir uma resposta para uma pergunta, mas apenas consegui criar mais perguntas, deixando a Lydia confusa, em relação à razão pela qual eu escondi a morte da Melody. Não posso dizer, mesmo que o queira. É um segredo e eu salvaguardarei dentro do meu coração, e ninguém me pode impedir.


***

Na manhã seguinte, acordei com o despertador do meu telemóvel, que tocou um pouco mais cedo. Fiz o máximo de silêncio que conseguia fazer, pois não queria acordar a minha avó.
Olhei pela janela, e o sol mal nascia no horizonte daquele imenso mar arroxeado pelo céu nacarado.
Vesti-me e dirigi-me à cozinha, onde deixei um bilhete para a minha avó no frigorífico, a avisar que tinha saído antes da hora.
Nada me fazia mudar de ideias… tinha de o fazer.
Saí de casa, reparando logo naquela névoa matinal, que cobria constantemente as ruas daquela zona de Fort Sim.

***

Fui mais cedo para aquela espelunca… Que dó, não descansei as dez horas que preciso de descansar para não ter rugas. Os jornalistas acordam cedo demais, nem sei onde eles vão buscar tanta energia para me fotografarem.


Vi aquele marrão no Bar da escola, a tomar o seu pobre pequeno-almoço. Quem é que se contenta com um galão e uma mini-tosta? Eu, preciso de ter, no mínimo, duas taças de cereais integrais, uma barra de chocolate light e um copo de sumo de morango. Há gente mesmo pobre a frequentar esta escola…



***

Resolvi vir mais cedo para a escola para rever umas matérias de Geografia em que tenho sentido mais adversidades. Como estava com fome resolvi comprar uma tosta de queijo que a simpática funcionária me preparou de propósito, uma vez que era cedo demais para disporem a comida do bar. Assim que dei um primeiro gole no meu leite com chocolate, a Sarah Mello entrou. Olhou-me com desdém e arrogância.


Tentei fingir que não me importava, mas isso não era verdade. Ela deitou uma olhadela rápida aos livros e cadernos que tinha disposto na mesa, de modo a facilitar o meu estudo, e continuou a andar com as suas vistosas botas de salto alto a tilintar freneticamente. Para ser honesto, desejei, mais do que nunca, ser menos introvertido. Desejei ser interessante, em vez de só ter a capacidade de falar em livros de Química. Quis ser mais bonito e não precisar de usar óculos. Sentia-me incapacitado, e isso magoava-me muito, mesmo apesar de já estar habituado.



***



O meu coração pulsou anormalmente assim que me aproximei da escola. As minhas pernas começaram a ceder e quase não conseguia falar. Era um nervosismo a percorrer-me o corpo intensamente que me punha naquele estado, mas estava ciente que tinha de o fazer, tinha de acabar com aquela farsa.
Apesar de não me sentir preparada, a minha teimosia falava mais alto, impulsionando-me para a entrada da escola e fazer o que pretendia, naquela manhã.
O átrio da entrada encontrava-se vazio, apenas lá se encontravam as funcionárias, que limpavam, já um pouco apressadamente, os corredores apinhados de cacifos.
Aproximei-me do bar, e, pela porta de vidro, consegui vê-lo. Não era a pessoa que eu queria falar primeiramente, mas não tinha escolha.
Abri a porta e avancei, com um nível de expectativa um pouco mais alto do que o dia anterior.