Capítulo 53



O tio Arthur avançou até à sala, espreitando cautelosamente antes de entrar. Ao vê-lo, a mãe sorriu e disse, divertida:
- Podes entrar!
- Como estás, Melody? - Perguntou ele, dando-lhe dois beijos na cara.


- Podia estar melhor - Respondeu a mãe, inexpressivamente, enquanto se sentava no sofá franzindo os sobrolhos com o peso da barriga.
Vi a expressão risonha do tio mudar. Franziu o sobrolho e encobriu o sorriso que lhe iluminava a cara, comprimindo agora os lábios nervosamente. Estava verdadeiramente preocupado. Sentou-se lentamente no sofá e fitou a mãe, dizendo calmamente:
- Porque dizes isso?


- Ultimamente tenho andado enjoada e maldisposta e...
- Mas isso e normal numa gravidez - interrompeu o tio Arthur, ansioso, serviu-se de um rebuçado de café, que, pelos vistos, sempre esteve na mesa de centro e colocou o papel no familiar cinzeiro de pedra fumada.
- Eu ando enjoada praticamente todos os dias, Arthur. Nem sequer consigo jantar, porque logo a seguir vomito. Às vezes até me custa a adormecer... o George ainda não reparou porque é muito distraído.
- Ah, ele não sabe disto? - Perguntou ele, surpreendido.
A minha mãe acenou negativamente, com uma expressão cada vez mais alarmada.
- Devias contar-lhe… - Disse asperamente o tio Arthur, pouco satisfeito pela pouca sinceridade entre a mãe e o pai.
- Eu não o quero preocupar, Arthur. Tu sabes como é que ele fica com a mínima coisa anormal que acontece comigo. Mal ele me vê tossir vem logo para o pé de mim perguntar se estou bem. Se eu lhe dissesse isto, aí ele entrava em euforia.


O tio recostou-se no sofá, pensativo e preocupado. A mãe também estava nervosa e acariciava freneticamente a barriga, como que a protegê-la de alguma coisa. Instalara-se um silêncio perturbador na sala, o que só serviu para aumentar a minha ansiedade.
- Talvez não seja nada de especial… - Bradou o tio Arthur, tentando-se convencer a si próprio do que estava a dizer. – Mas… tu já falaste com o médico?
- Sim, já falei. - Retorquiu a mãe. - Ele disse que apesar de isto não ser normal acontecer, não há motivo para alarme...
Os olhos verde-água do meu tio voltaram a brilhar, e ele ostentou um sorriso de alívio. Mas a minha mãe não parecia tão aliviada, antes pelo contrário. Havia algo na sua expressão que começava a assustar-me de verdade.
- Eu sinto que estes enjoos não são normais, Arthur - Disse a mãe, meio assustada meio preocupada. – Às vezes até sinto que desmaio quando estou muito tempo de pé…


O tio Arthur começou a mexer suavemente no seu anel que envolvia o seu dedo indicador, olhando para o chão espessamente alcatifado da sala. O seu olhar parecia expressar preocupação mas ao mesmo tempo descontracção. Quando sentiu que a mãe olhava incansavelmente para ele, o tio mudou rapidamente a sua expressão e deu-lhe suaves palmadas nas pernas.
- Não te preocupes… Se o médico disse que não é nada… Há que confiar nos médicos não é?
A mãe acenou afirmativamente com a cabeça, não tirando os olhos da sua barriga.
- Bem… tenho de ir. – Concluiu o tio Arthur, levantando-se do sofá, ainda com os lábios comprimidos, dando a entender que ainda remoía no assunto.
Deu um breve beijo na testa da mãe, e antes de sair, inclinou a cabeça para as escadas que davam acesso à cave, despedindo-se alegremente do pai.
Rodou a maçaneta, e antes de sair de casa, olhou mais uma vez para a mãe, que se encontrava recostada no sofá a ver televisão, até que saiu.
O estrondo da porta fez aquela imagem erguida diante dos meus olhos estremecer ligeiramente, fazendo mais algumas farripas de sombras soltarem-se dos objectos. A mãe tinha desaparecido do sofá, fazendo-se agora ouvir o som de loiça a ser lavada, na cozinha.
Passei pelo Hall e observei o calendário.

18 De Dezembro 1990

Tinha avançado um mês, o que fez com que eu ficasse ansiosa mas ao mesmo tempo desesperada e com vontade de sair daquele mundo. Fez-me pensar na incógnita maneira de sair dali e voltar para a minha vida normal. Sentia que já tinha visto tudo o que queria, e não queria, ver. Sentia que já nada me impressionaria no meio daqueles fantasmas do meu passado.
Os meus pensamentos foram rapidamente rompidos pelo som de estilhaços a deslizarem pelo chão.
Dirigi-me, aceleradamente, para a cozinha, e o meu coração quase me saltou pela boca. Senti um enorme arrepio a percorrer-me as entranhas e uma dolorosa ânsia. As minhas pernas começaram a tremer, fazendo com que as forças sumissem das mesmas.
A camisa de dormir da mãe encontrava-se alagada em sangue. Das suas pernas escorria água incansavelmente. Não tirando as suas mãos da barriga, com a sua cara completamente enrugada por franzir fortemente as sobrancelhas, chamou pelo pai, que se encontrava já a dormir. Mas ninguém respondia.


- George… George… - A fraqueza começava a tomar conta do seu corpo, tentando chegar até às escadas para o pai ouvir melhor. Mas era impossível, nem um centímetro se conseguia mexer.


Corri até ao quarto dos meus pais, e o pai encontrava-se a dormir. Sabia que ele não me ouvia nem sentia o abanão que eu, constantemente, lhe dava para o acordar. Por isso, agarrei num vaso de flores que repousava no toucador e atirei-o com todas as minhas forças para o chão, sujando-o de terra húmida e flores aqui e ali.


O pai acordou num sobressalto olhando para o vaso partido no chão. Da cozinha, fez-se ouvir um histérico grito da mãe.
- GEOOOOORGE!
- Melody… - Murmurou.
Levantou-se da cama e desceu as escadas a correr, penetrando no arco que dava acesso à cozinha. A sua cara empalideceu ao ver todo aquele sangue à volta da mãe, que se encontrava enfraquecida encostada à esquina de uma bancada do lava-loiça.
Corri para o telefone, e pousei-o em cima da mesa da cozinha, na esperança de ajudar o pai, que quase entrava em pânico.
Depois de ele chamar a ambulância correu até à mãe, que já se encontrava sentada no chão com os olhos semicerrados. Abanava uma revista para refrescar a cara suada da mãe, fazendo esforços infrutíferos para a acalmar.



De súbito, o forte som da ambulância penetrou pelas janelas fazendo o pai suspirar de alívio e reconfortar a mãe:
- Eles chegaram, Melody. Eles chegaram… Vai ficar tudo bem!
Contudo, a mãe não pareceu aliviada, continuando com uma expressão sofredora e pálida, o que começou a assustar-me cada vez mais.


Sê forte, mãe! Sê forte!

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