Capítulo 58

A noite caiu, e o meu tio tinha ido aos prados verdejantes que circundavam a igreja buscar mais lenha para me aquecer. Encontrava-me naquela sala sumptuosa e erma. Nada se fazia ouvir à minha volta, apenas o incansável som da crepitação da lareira e o suave uivo do vento que me chegava aos ouvidos como se fossem punhais.


Apenas me conseguia lembrar daquelas sombras a erguerem-se diante de mim quando mergulhei naquele poço, e da torturante imagem da minha mãe, com os seus olhos inexpressivos e pouco brilhantes, como globos vítreos, a olhar para o nada. Sentia-me receosa de sucumbir a uma depressão... sentia que a minha vida já nem fazia sentido e que nada me fazia ter vontade de viver, nem mesmo o Jake, que, naquele momento, parecia a minha estrela que nunca, mas nunca se apagava da minha mente, desde aquela tarde no campo, que eu nem sabia se tinha sido mesmo nesse dia, pois já nem tinha noção de quanto tempo tinha passado dentro daquele poço.


Descobri toda a verdade, no ambiente mais hostil conhecido pelas pessoas.
Os meus pensamentos corrosivos foram logo interrompidos com a chegada do meu tio, que acartava meia dúzia de troncos e galhos.
- Deixa-te estar. Eu trato disto! – Insistia ele, quando eu lhe oferecia ajuda.
Quando pousou a lenha no chão, e colocou alguma na lareira, prosseguiu:
- Encontrei uma loja de decoração aberta, e pensei em trazer-te cobertores reforçados.
- Oh, não era preciso!
- Não era preciso se fosse Verão. Estamos quase no Inverno e o frio está cada vez mais intenso.


Não insisti, pois sentia-me cansada e com vontade de me deitar mesmo ali, naquele chão de madeira junto à lareira. Mas, de súbito, lembrei-me de lhe perguntar:
- Então… Onde é que tu vais dormir?
- Oh, um banco do altar serve perfeitamente. E não fiques incomodada, porque eu não me importo!
Pela porta entreaberta, conseguia ver que as tochas que iluminavam o altar já estavam apagadas, instalando-se ali uma densa e fantasmagórica escuridão.
O tio Arthur veio para junto de mim, para se aquecer junto da lareira. Apesar de a manta ser extremamente quente, a minha roupa continuava muito húmida e eu precisava realmente que ela secasse com o calor das chamas.
Estávamos ambos com um ar pensativo. Eu pensava, curiosamente, na razão pela qual o meu tio me empurrara para o poço. Por mais que pensasse, a resposta passava-me completamente ao lado. E o meu tio deveria estar a pensar na minha mãe, a avaliar pelos olhos verde-água que brilhavam e pela postura rígida que ele assumia.
Porque é que o tio me empurrou para o poço? Sabia que ele me levava ao passado?


Vi um sorriso malicioso emergir-lhe no rosto.
- Bem, eu acreditava na lenda que dizia que ao recitar aquelas palavras em latim, as águas do poço se transformariam num portal que levariam a pessoa ao passado, sem poder afectar o presente, como é óbvio. Mas, para te ser sincero, nunca pensei que resultasse.
Enquanto pensava na realidade sobrenatural que eu vivera, constatei com alívio e felicidade que a minha blusa estava praticamente seca. Estendi as mãos enregeladas para as aquecer, nas chamas da lareira.
- Melody, eu fiz de tudo para que o teu pai te contasse a verdade desde o início. Mas ele é muito teimoso, quando mete alguma coisa na cabeça, é praticamente impossível tirá-la. E por isso acabou por levar avante a ideia dele.


Comprimi os lábios em sinal de concordância. De facto, teimosia era algo que caracterizava na perfeição o meu pai. No entanto, com o tempo, aprendera a lidar bem com esse defeito. E agora, em vez de me irritar com isso, como parecia acontecer com o meu tio Arthur, achava piada.
- Faz-me confusão... como é que ele não se sentia mal a mentir-me daquela forma sobre a mãe… - Murmurei, com uma voz fraca, não retirando o olhar das chamas de cor ígnea da lareira.
- Sabes, quando vivemos muito tempo numa mentira, acabamos por torná-la realidade.
- O que quer dizer com isso? - Indaguei, sentando-me mais confortavelmente no chão gelado - Que depois de tanto tempo a mentir-me, o meu pai começou a aceitar essa mentira como uma verdade? Mesmo para ele que sempre soube de tudo?
- Sim - respondeu ele com frieza.


O meu tio detectou o meu desagrado através do meu rosto. Eu observei os seus olhos verde-água, que brilhavam com intensidade como eu já vira tantas vezes acontecer.
- Eu fiz tudo para ele te contar a verdade. - Retorquiu ele, frisando bem a palavra "tudo" - Queria ter podido evitar todo esse sofrimento que agora estás a sentir.
- Eu sei - murmurei, tristemente - Eu daria tudo para ter aqui comigo a minha mãe. Há uma semana atrás, não quereria saber dela para nada, mas agora...
O meu tio sorriu sem mostrar os dentes e disse, com ar soturno:
- Eu também daria tudo para ela estar aqui. Nós... nós éramos muito unidos, sabes? Unha com carne... Discutia muito pouco com ela, comparativamente às outras crianças da nossa idade. Já com dez anos, ela era responsável e adulta, e era sempre a primeira pessoa a quem eu recorria quando tinha um problema. Ela também era muito divertida. Riamo-nos tanto juntos! Costumávamos brincar imenso no pátio junto da nossa casa. Ainda me lembro daquelas tardes, depois da escola... quando a nossa mãe se certificava que tínhamos feito os trabalhos de casa, deixava-nos ir. Levávamos uma bola, sandes e sumos e era tudo o que precisávamos para nos divertirmos durante a tarde... Quando ela... faleceu, foi como se a minha vida desmoronasse como um castelo de cartas. E ainda sinto isso, sempre que penso nela...



Comecei a chorar e vi que o meu tio fazia o mesmo, sem o querer mostrar. A maneira como ele disse aquelas palavras fez-me pensar que o tempo não pára, por muito que nós queiramos e que, ao olharmos para trás das costas, para aquelas recordações, sabemos que elas não se tornam a repetir… pelo menos da mesma maneira.
Fez-se um pouco de silêncio, fazendo-se apenas ouvir o som das chamas incansáveis da lareira, até que me prenunciei, ainda com a voz trémula:
- Quanto tempo eu estive no poço?
- Por muito estranho que pareça, apenas estiveste 4 horas…
Fiquei surpreendida pela quantidade de fantasmas que vi, em tão poucas horas, mas isso pouco ou nada me interessava ao lado daquela ígnea vontade que eu tinha de ver a lápide da minha mãe, e poder sentir-me perto dela, pela primeira vez nada vida.
Levantei-me subitamente:
- Tens velas?
- Sim porquê? – Perguntou ele, ainda limpando as lágrimas ao tecido áspero.
- Quero acender uma para pôr junto da campa da minha mãe. Preciso de estar com ela!
O tio Arthur esboçou um ligeiro sorriso, e encaminhou-me para uma prateleira cheia de velas de todos os tamanhos e feitios.

8 Response to "Capítulo 58"

  • Maines & Didi Says:

    Uau, este capítulo está LINDO!!! Amei por completo.... tens muito jeito mesmo!!!!

    Está cada vez mais brilhante e muito bom!!! Os meus sinceros parabéns, continua... Adoro as tuas histórias!!! Bjs, didi


  • ¡๓εร Says:

    Uau!! Adorei este capítulo, está mesmo muito lindo :D
    Adorei a ideia, como já tinha lido noutro episódio, de ela querer pôe uma vela na campa da mãe!
    Amei! Continua por favor...

    xD


  • Maines & Didi Says:

    P.s: PRIMEIRA A POSTAR.... lol!!!!

    Mais uma vez, amei!!! Nao sei porque, mas já estou a ficar fanatica por este blogue XD


  • ¡๓εร Says:

    Correcção: em vez de pôe é pôr, xD
    É que o R é muito perto do E... loool
    Mais uma vez, ADOREI!
    lol..


  • João Says:

    Que lindo!
    A sério!
    Fogo, e impressionante a cumplicidade que eles criaram! Magnifico! Soberbo!
    Quero mais... u____u


  • Mr.Lis Says:

    Adorei!

    Uau só 4 horas ?!
    Nunca imaginei xD

    Adorei !!
    Parabéns !!


  • mmoedinhas Says:

    Tudy!!!!!!!!!!! Desculpa, desculpa, desculpa, desculpa, desculpaaaaaaaa!!!!!!! Eu fiquei sem net durante 3 dias! imagina... Por isso nao pude comentar o capitulo 57... Eu sou horrivel!!!!!!kkkkkkk Má fã! :'(

    Mas não é tempo para magoas... É tempo para histerismo!!!!!!!!!!!!!!!! Estou mesmo histerica/feliz pelo Arthur se dar bem com a melody! (eu até imaginei que quando ela saísse do tanque que ia a correr dar um abraço e a gritar titio!!!!!! XD era querido :3)
    E e a pensar que o arthur era dos mauzoes... Continuava a gostar dele na mesma XD (dave não chores...)
    Está tão bonito... As fotos e tudo... Comoveu-me a foto em que ele está a empurrar a irma no baloiço... :( *triste*

    agora fiquei preocupada!!!!! Ai o pai da Melody vai levar tautau! Seu mauzão... é para aprenderes que mentiras nao se contam!

    *histerica/feliz/triste/mistura de tudo* Quero muito mais!!!!!!!! Eu simplesmente ADORO AS TUAS HISTORIAS!!!!!! Nunca vou deixar de comentar e se fizer isso, é porque tou com problemas de internet, a minha sorte é muita...

    Deg deg

    P.S Os meus coments sãoa ssim tão bons para agora outros fãs andarem a perguntar por eles? Fiquei SUPER lisongiada xD (acho que é assim que se escreve lisongiada... se não for paciencia xD)

    Deg deg outra vez


  • mmoedinhas Says:

    =O!!!!!! Oh não testamento!!!!!! Peço desculpa tudy (outra vez xD)


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