Capítulo 56

Os prados verdejantes que circundavam a igreja desapareceram perante o negrume espesso que se formou. Todo aquele verde imenso desapareceu, dando agora lugar a uma sala antiga que se ia compondo a medida que o cenário anterior se desfazia. A sala que ali se erguia era familiar.


Tinha um aspecto usado, e era facilmente confundida com uma sala de estar, quando se reparava nos sofás, de cabedal denso e castanho. No entanto, quando reparei na secretária de madeira envernizada, atafulhada de resmas de papéis, terços, Bíblias, canetas e folhas já escritas, apercebi-me que aquela sala servia também de um escritório. Em frente aos pavorosos sofás, estava uma mesa pequena com tampo em vidro, cheia de tralha também a combinar com o resto da sala, era em madeira envernizada, com os puxadores dourados muito bem polidos, que não combinavam, de todo, com a fina camada de pó que cobria a secretária. Ao fundo da sala estava uma lareira a crepitar freneticamente.


Era daquelas lareiras antiquíssimas, que se vêem essencialmente nos filmes. Nela acumulavam-se troncos e galhos prontos a serem queimados para aquecer a sala. Perpendicular à lareira, estava uma estante que ocupava quase toda a parede, com grandes vasos de plantas de grande porte nos seus flancos. Nela estavam imensos livros, ou Bíblias, alguns com aspecto velho e poeirento e outros quase que ainda cheiravam a novo. Tinha tudo um aspecto clássico e luxuoso, característico das igrejas. Fazia lembrar as "dioceses" dos padres, antigamente. Aquele espaço não me era estranho, apesar de ser visivelmente mais novo do que aquele que detinha na minha memória.
E após observar uma vez mais pormenorizadamente a sala, testemunhei que fazia parte do monumental interior da Igreja dos Três Bispos.


Nesse momento, vindo do nada, vi o tio Arthur, trajado com a sua habitual túnica feita de um denso e áspero tecido, com o seu capuz a envolver-lhe a cabeça. Ostentava uma cara de poucos amigos, como já era habitual aparentar, mas daquela vez parecia ainda mais séria.


Abriu um dos armários envidraçados da enorme estante, e retirou de lá uma garrafa feita de um vidro cristalino, que brilhava no meio daquelas sombras que ainda se iam compondo à medida que eu calcorreava aquele escritório. Notei logo, pela sua ígnea cor laranja, que no interior daquela garrafa cristalina ondulava uma enorme porção de Uísque, estando já uma pequena parte despejada num sumptuoso copo.
Deu um pequeno gole no copo brilhante e pousou-o na secretária lotada de papéis e livros. Sentou-se na cadeira, também feita de um denso cabedal, e recostou-se na mesma, olhando para uma moldura, que, quando me virei para a mesma e a consegui vislumbrar, armazenava uma belíssima fotografia da mãe. O tio Arthur manteve-se com uma expressão apática, dando mais um gole no copo de Uísque. Terminou o seu gole, que se mostrou ligeiramente mais longo que o anterior, olhando para a porta, ao ouvir alguém bater.
- Entre. – Disse o tio Arthur, mais parecendo que dava uma ordem.
A porta escancarou-se, e de lá entrou o pai, com uma cara um pouco enjoada, ao olhar para aquele escritório. O tio Arthur fitou-o, enquanto ele fechava a porta de madeira, distintamente mais velha.
- Recebeste a minha mensagem, pelos vistos… - Sussurrou o tio, com os dedos entrelaçados uns nos outros e com os cotovelos suavemente pousados num espaço livre da secretária, que não estava coberto de papéis nem de livros.
- Sim… Recebi.
Notei uma mudança de disposição ora no pai, ora no tio, pois já não se cumprimentavam da mesma maneira que era dantes, e não falavam no mesmo tom de voz bem-disposto e audível.
O pai olhou para a garrafa cristalina de Uísque, pegando num copo e servindo-se com uma pequena porção. Sentou-se num daqueles sumptuosos sofás, e preparou-se para ouvir o que o tio Arthur, provavelmente, lhe tinha para dizer. Este levantou-se da sua cadeira por detrás da secretária, levando o seu copo consigo, já meio vazio. Fitou uma vez mais o pai, com uma cara apática, mas que me provocou um intenso arrepio.


- O que é que me queres dizer? – Perguntou o pai, com a cabeça erguida para fitar também o tio, que se encontrava de pé.
- Quero falar sobre a Melody… A tua filha.
- Disseste bem… A minha filha. Não vou voltar a discutir isto contigo, Arthur. Como pai da Melody, sou eu a cuidar dela e sou eu a tomar as decisões que acho que são melhores para ela. – Disse o pai, mudando o seu tom de voz, e levantando-se para mirar as ondulações incansáveis do fogo da lareira.
- Mas eu sou o seu tio. Irmão da sua mãe. E “como tal” também tenho o direito de protestar contra esta estúpida mentira!


O pai virou-se para trás, com uma cara, agora, zangada e nervosa.
- George, pensa bem no que estás a fazer. Se a tua filha souber no futuro vai ser ainda pior!
- Tu não sabes nada. Tu não sabes o que é que eu tenho de fazer, para bem da minha filha. Eu quero dar-lhe uma vida tranquila, normal e sem desgostos, depressões nem traumas, que é o que se passará muito provavelmente, se eu lhe contar a verdade!
- Então… vais-me dizer que ter uma mãe no estrangeiro em viagens de negócios durante anos e anos sem pôr os pés em casa, nem no Natal, nem no seu aniversário é dar à tua filha uma vida normal? Poupa-me George! Isso é uma maneira errada de pensar. Ela com certeza que saberá um dia destes!


- “Um dia destes”… - Repetiu o pai, olhando de novo para a lareira a crepitar. – Eu não quero saber do futuro, Arthur. Apenas me interesso com o presente. Se algo tiver de vir no futuro… que venha. Não quero saber. Apenas me interessa o presente!
- Boa… então não te admires que no futuro a tua filha não queira nem olhar para a tua cara! – Exclamou o tio Arthur, acentuando o tom da sua voz. – Tu não percebes?
- Percebo! Percebo! Percebo que tu, neste momento, não és ninguém para me dizeres o que fazer. Eu sou o pai da Melody, e só eu tenho o direito de decidir o que é melhor para ela!


- Melhor para ela? Mas tu tens sequer noção de que o facto de não poder ver uma mãe é, inequivocamente, triste? A Melody ainda vai sofrer muito no futuro, e tudo por tua causa!
- No que depender de mim, a Melody nunca vai sofrer no futuro. Vou encobrir a morte da minha mulher o tempo que for preciso até…
- Até ela te perguntar porque é que a sua mãe está tantos anos no estrangeiro? – Interrompeu o tio Arthur, pousando o seu copo de Uísque abruptamente na mesa de centro.
O pai virou-se para trás, encarando a cara nervosa do tio.


- Ela nunca irá perguntar… - Balbuciou. – Porque eu irei dar-lhe de tudo… irei servir de pai e de mãe simultaneamente. Eu não vou contar à minha filha que a sua mãe morreu, Arthur. Jamais. Eu tenho uma missão… uma missão que é a única razão de eu acordar de manhã com vontade de viver… É proteger a minha filha, e ninguém me impede de o fazer, sejam quais forem os obstáculos.
E dito isto, o pai saiu apressadamente do escritório, batendo com a porta, fazendo alguns fiapos de sombras soltarem-se das mobílias.
Senti-me traída pelo meu próprio pai. Senti-me com raiva, ódio… tudo o que pudesse descrever o facto de eu, com toda a certeza, não querer olhar de novo para a sua cara.


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